história

O dedo dos EUA no golpe

Enquanto ações norte-americanas contra a democracia do Brasil vão-se revelando – graças a leis que garantem aos cidadãos americanos acesso a informações de interesse público –, o lado brasileiro continua obscurecido nos arquivos do regime militar

Acervo Iconographia
Acervo Iconographia

O embaixador norte-americano no Brasil em 1964, Lincoln Gordon, passou os últimos 43 anos de sua vida (ele tem 93 e, ainda lúcido, mora numa casa de repouso nos arredores de Washington) negando o envolvimento dos Estados Unidos no golpe que levou os militares brasileiros ao poder.

Em 1966, dois anos depois da quartelada de 31 de março e 1º de abril, ele declarou em depoimento ao Senado dos EUA: “O presidente (João) Goulart foi derrubado por um movimento puramente, 100%, não 99,44%, mas 100% brasileiro”. Hoje é possível confirmar, com absoluta certeza, aquilo que sempre se suspeitou. A solene negativa de Gordon era uma afirmação – não 99,44%, mas 100% – mentirosa.

As provas de que os EUA conspiraram contra a democracia brasileira tornaram-se conhecidas quando Philip Agee, ex-agente da CIA, contou o que sabia num livro de 1975. Desde a posse de Goulart, em 1962, os dólares de Washington financiavam políticos e jornais de oposição no Brasil, entre os quais o grupo Diários Associados, de Assis Chateaubriand – quase tão poderoso, na época, quanto a Rede Globo na atualidade. Para o presidente John Kennedy, o reformista Goulart era mais perigoso que Fidel Castro.

Mais tarde, num “furo” de reportagem em 1977, o jornalista Marcos Sá Correa trouxe a público a Operação Brother Sam, intervenção militar que o sucessor de Kennedy, Lyndon Johnson, pôs em movimento ao ser informado de que tropas brasileiras estavam em marcha contra o governo. O porta-aviões Forrestal e outros 11 navios foram despachados rumo às costas brasileiras, mas deram meia-volta diante da notícia de que os golpistas já controlavam a situação.

A presença do dedo americano no golpe se tornou mais clara a partir de 2004, quando documentos confidenciais começaram a vir a público devido ao fim do prazo legal de sigilo. Telegramas enviados pelo embaixador Gordon insistiam pelo apoio direto aos golpistas liderados pelo general Castello Branco.

Quatro dias antes, em 27 de março, Gordon recomendou a seus superiores em Washington que despachassem um submarino com “armas não americanas” destinadas aos militares sublevados. Entre as sugestões do embaixador estava o envio de combustíveis para ajudar no golpe – exatamente de acordo com o pedido feito ao governo norte-americano, segundo se revelou mais tarde, pelo empresário paulista Alberto Byington, em 15 de março. O general Cordeiro de Farias fez o mesmo pedido ao adido militar dos EUA, Vernon Walters.

Segundo o correspondente de O Globo em Washington, João Meirelles Passos, que teve acesso à papelada, Gordon notificou a Casa Branca de que, enquanto as armas não chegavam, adotou “medidas complementares com os recursos disponíveis para ajudar as forças de resistência”. As medidas “incluem apoio encoberto para manifestações de rua (ou seja, as famigeradas marchas das donas-de-casa católicas) e incentivo ao sentimento democrático e anticomunista no Congresso, nas Forças Armadas, nos sindicatos amigos, na Igreja e entre empresários”.

A intervenção direta dos EUA, como se sabe, tornou-se desnecessária. O presidente Goulart abandonou o cargo sem resistir. Mas os documentos mostram que o presidente Johnson estava disposto a ir até as últimas conseqüências para garantir um governo pró-americano no Brasil. Uma fita de cinco minutos, obtida na Biblioteca Lyndon Baines Johnson, registra uma conversa telefônica no dia 31 de março em que ele dá aos seus assessores o sinal verde para o apoio total ao golpe. “Nós simplesmente não podemos agüentá-lo”, enfatizou Johnson, numa referência a Goulart. Na mesma fita, afirma que mobilizou todos os integrantes da sua equipe dotados de “imaginação e esperteza” para garantir que o golpe fosse bem-sucedido. Entre eles, mencionou o secretário da Defesa, Robert McNamara.

Comunicado enviado a Washington pela unidade da CIA no Brasil no dia 30 de março, véspera do levante militar, indica claramente o contato de agentes com os golpistas. O relatório “Planos de conspiradores revolucionários em Minas Gerais” afirma que “uma revolução lançada pelas forças anti-Goulart certamente avançará nesta semana, provavelmente nos próximos dias”. Informa planos militares para uma “marcha em direção ao Rio” e prevê que a “revolução não será resolvida rapidamente e será sangrenta”.

A novela das revelações sobre o papel dos EUA no golpe de 1964 ainda está longe de acabar. O capítulo mais recente veio a público em 15 de julho deste ano, quando a Folha de S.Paulo noticiou a existência de um documento intitulado “Um plano de contingência para o Brasil”, elaborado por dois diplomatas norte-americanos em 11 de dezembro de 1963. Um dos autores é o então secretário executivo do Departamento de Estado, Benjamin Head. O outro é Lincoln Gordon.

As peças do quebra-cabeça vão, aos poucos, se encaixando. Um detalhe triste é que todos os fatos que vêm a público têm origem em fontes dos EUA, onde uma lei garante o direito dos cidadãos às informações de interesse público. O lado brasileiro só será conhecido quando forem abertos, finalmente, os arquivos do regime militar. Um vespeiro? Talvez, mas essa é a nossa história – e temos o direito de conhecer.