Livres para decidir

Uma laje em Paraisópolis, um bistrô, uma horta. E mulheres poderosas

Organização, espírito de coletividade, autonomia financeira e outras receitas contra a violência doméstica. A luta de Elizandra Cerqueira em uma das maiores favelas do Brasil

Marcia Minillo

As experiências do bistrô e da horta receberam prêmio em Paris. Estas fotos foram expostas lá

A história do Bistrô & Café Mãos de Maria, um charmoso restaurante numa laje de Paraisópolis, não seria a mesma se Elizandra Cerqueira, uma das idealizadoras do espaço, não tivesse vivido na pele episódios tão parecidos como os protagonizados por mulheres do seu entorno.

A ideia surgiu com a vocação de empoderar as mulheres da comunidade – em uma das maiores favelas do Brasil, ao lado do bairro do Morumbi, região sudoeste paulistana. Muitas delas vítimas de violência doméstica, como a própria Elizandra.

Uma vez Elizandra ouviu do chefe que não devia dizer para ninguém que morava em Paraisópolis. “As pessoas têm muito preconceito. Diga que é do Morumbi”

Inaugurado em setembro de 2017, o bistrô foi uma iniciativa da Associação das Mulheres de Paraisópolis. Funciona junto com o projeto Horta na Laje, que fomenta o plantio de ervas, temperos e hortaliças, estabelecido no terraço da União de Moradores e do Comércio de Paraisópolis, onde fica o restaurante. A publicitária Elizandra, de 30 anos, é presidente da associação, e teve com Gilson Rodrigues, presidente da União de Moradores, na condução do projeto.

“Mesmo antes da inauguração do restaurante, oferecemos aqui uma série de cursos de gastronomia, para que muitas mulheres possam ter renda própria e se manter”, conta Elizandra.

Os cursos começaram há quatro anos, sempre gratuitos, e por eles já passaram, ela estima, 4 mil mulheres. “São oferecidas aulas de doces, bolos e salgados para festas. Também ensinamos a preparar pratos brasileiros, que geram renda com a venda de marmitas e bufês em domicílio”, conta a baiana de Poções, que chegou em São Paulo com a família quando tinha apenas 1 ano.

Ela revela com orgulho como superou obstáculos e tornou-se referência para outras mulheres. “Nossa sociedade é extremamente machista e preconceituosa, não dá para fingir que não. Mulher, nordestina e moradora de favela sofre muito mais preconceito. Se for negra, então, o preconceito dobra”, diz Elizandra, cuja história rendeu uma biografia: Elizandra, muitas vozes numa só, escrita por Flavia Iriarte e Rodrigo Barreto, lançada no ano passado pelo selo Biografias Colaborativas (editora Oito e meio).

Independência financeira

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Para ela, que sofreu agressões físicas e verbais de um companheiro, a independência financeira é um instrumento libertador da mulher. “Aqui, os casos de violência infelizmente são muito comuns. Queremos mudar isso a partir desses projetos também. E temos conseguido.”

Muitas mulheres, depois que passam a ter como se manter, observa Elizandra, saem de suas casas, procuram outro lugar para viver e se libertam, têm outra vida, diz. “Claro que o processo não é simples, mas ter condições financeiras é um ponto de partida muito importante para a mulher.”

Elizandra não esconde o orgulho e a satisfação com a horta e o bistrô. E reconhece a importância das parcerias. A horta, por exemplo, foi feita em conjunto com Gilson. Incentivada por ele e por sua própria história de vida, Elizandra acabou por fundar a Associação de Mulheres da favela, há quase 12 anos.

Com apoio de Gilson, ela concorreu a uma premiação oferecida pelo Instituto Stop Hunger, uma organização social internacional que luta contra a fome e pelo empoderamento de mulheres. Em março do ano passado ela levou o primeiro lugar pela iniciativa criada em Paraisópolis.

Esteve em Paris para apresentar o projeto da horta e do bistrô em companhia de Gilson. “Foi muita emoção e alegria receber essa premiação diante de uma plateia de 500 pessoas muito influentes, do mundo todo”, revela.

As fotos da noite em Paris estão expostas no café do bistrô. “Muitas mulheres me falam que sou uma inspiração para elas, isso me enche de felicidade.” Da premiação, participaram mulheres de 44 países, com projetos de empreendedorismo feminino, geração de renda e sustentabilidade. Ela era a única representante do Brasil.

Inspiração a outras mulheres

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A trajetória de Elizandra em São Paulo é parecida com a de tantas outras moças filhas de pais que migraram do Nordeste em busca de melhores condições de vida. Seu pai, Atayde, chegou na capital paulista nos anos 1970, quando o setor da construção civil estava no auge. O bairro do Morumbi, ainda cheio de mato e de terrenos vazios, começava a se formar.

Atayde foi para a região com a esperança de trabalhar como pedreiro. E ali ficou. Até hoje exerce seu ofício.

Encravado no Morumbi, já havia um aglomerado de casas muito simples e de barracos. Ele crescia na mesma proporção que o bairro nobre: era a favela de Paraisópolis se expandindo, uma comunidade que hoje abriga cerca de 120 mil habitantes e que, em 2020, completará 100 anos de existência.

Ali, no início, moravam muitos trabalhadores que erguiam mansões no Morumbi. Eliza, mãe de Elizandra, seguiu o caminho de outras mulheres migrantes daquele período. Chegando em São Paulo, foi trabalhar como empregada doméstica também no bairro.

Elizandra, a terceira de cinco filhos do casal Eliza e Atayde, não tardou a traçar para si outro destino meio. Quando adolescente, viu muitas meninas ficarem grávidas precocemente e, com isso, tornarem-se dependentes de parceiros. Seu sonho era fazer faculdade e, se possível, abrir caminho para que outras mulheres também fizessem.

Já no colégio, tornou-se uma liderança estudantil. Na sequência, virou uma referência feminina na comunidade. Quase ao mesmo tempo, os episódios pessoais dolorosos que teve de enfrentar a estimularam a ir mais fundo em seus sonhos. A custa de muito estudo e determinação, ingressou no curso de Publicidade na Universidade Anhembi Morumbi, com bolsa integral.

Formada e já trabalhando em uma agência, um dia ouviu do chefe que não devia dizer para ninguém que morava em Paraisópolis. “As pessoas têm muito preconceito. Diga que é do Morumbi”, aconselhou.

“Eu me senti profundamente atingida. Isso já havia ocorrido em outros empregos, e eu achei que tinha chegado a hora de mudar essa realidade. Não tenho vergonha de onde cresci e vivo, ao contrário. Não moro aqui porque quero, mas porque foi o lugar em que meus pais conseguiram se estabelecer”, conta.

Outra situação vivida por ela também foi determinante para consolidar sua luta. Casada, sofreu muito com o então marido, vivendo cenas terríveis de ciúme e violência – a última, que culminou em sua separação, foi grave. Elizandra quase morreu de tanto apanhar do parceiro. E se hoje consegue falar do assunto foi porque compreendeu o processo e superou sua dor à custa de muita luta.

Casou-se novamente, agora com um companheiro que a respeita e a incentiva. Está feliz e pensa em ter filhos, mas mais tarde, indo um pouco na contramão da maioria das moças de Paraisópolis. “A maternidade é algo que almejo, mas mais para a frente. Antes tenho muitas outras coisas para fazer que considero prioridade”, explica.

Sobre seu passado, diz, convicta: “Vivi muita coisa que me machucou, mas não aceitei os fatos passivamente. Decidi, a partir desses episódios tristes, que eu tinha de fazer algo pelas mulheres de Paraisópolis – a maioria de origem nordestina como eu, sofrendo problemas parecidos.”

Foi então que criou a Associação de Mulheres da favela. Antes, porém, esteve à frente da Agência de Empregos de Paraisópolis. Conseguiu empregar mais de 3 mil moradores da favela em empresas de diversos portes.

Essa experiência inspirou a criação de algo mais específico para o público feminino.

“Eu logo percebi que muitas mulheres só estavam junto com um homem por conta da dependência financeira”, afirma. Para tirá-las daquela situação, resgatou um projeto chamado Doces e Salgados Mãos de Maria, um curso de capacitação em gastronomia para mulheres que já havia na comunidade. A partir daí vieram a horta e o restaurante.

E os cursos, com apoios diversos, tanto de instituições como de empresas privadas, só crescem, assim como a fama dos pratos oferecidos na laje mais verde de Paraisópolis.

Sobre o nome do bistrô, ela conta como surgiu: “As primeiras mulheres que procuraram os cursos tinham, coincidentemente, o nome Maria, muito comum por aqui e no Brasil todo. Resolvemos então homenagear essas mulheres que tão bem representam a luta da brasileira.”

Mais adiante, Elizandra pretende expandir seu projeto para além dos muros de Paraisópolis. Com apoio de instituições e empresas, quer criar uma espécie de franquia social do bistrô, levando a ideia para outras comunidades e beneficiando mais e mais mulheres.

A partir disso, com mais pessoas de fora frequentando os restaurantes, ela espera ainda diminuir o preconceito que muita gente tem contra quem mora em favelas. “Chegar na comunidade e ver um restaurante agradável, que serve comida fresca e saudável, certamente contribui para que muita gente perca o receio de frequentar as favelas. É nessa luta e na independência das mulheres que acreditamos.”

Os sabores e segredos do Bistrô & Café Mãos de Maria

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Para cada dia da semana, um prato diferente: carne de panela, galinhada, frango, moqueca. Às quartas, como pede a tradição, feijoada.

O frango pode ser servido com quiabo, conforme a moda mineira, ou como estrogonofe. Há algumas variações. A moqueca às vezes é de peixe, outras de camarão.

O cardápio atrai gente de longe – de fora do bairro, da cidade e até do país. O tempero especial, colhido diretamente da horta que fica entre as mesas do restaurante, o lugar, sua história, a simpatia dos atendentes, tudo conspira para tornar essa laje de Paraisópolis uma referência social.

Cheio de cor e verde num entorno praticamente árido, o Bistrô & Café Mãos de Maria desperta atenções de longe. Na decoração, toalhas coloridas, muitas flores, plantas, grafites pelas paredes e guarda-chuvas pendurados numa espécie de varal tão o tom ao lugar.

Os projetos, além de criarem empregos e estimularem o plantio e o consumo de alimentos saudáveis entre a população, são autossustentáveis. O bistrô emprega seis funcionários, treinados em cursos oferecidos no espaço, e, com o que gera com a venda dos pratos, é capaz de manter a estrutura e garantir o salário dos que nele trabalham.

As refeições, no estilo “coma à vontade”, custam R$ 20 por pessoa e são oferecidas sempre de segunda a sexta. Bebidas e sobremesa são cobradas à parte. Na quarta-feira, por conta da feijoada, a laje lota.

Um sábado por mês o bistrô abre as portas e traz como atração a feijoada com pagode, R$ 30 reais por pessoa. Nessas datas é preciso antecipar a reserva. Em dias comuns, são servidas cerca de 20 refeições diárias. Muitos frequentadores dizem que os pratos têm gosto de “comida de mãe”.

“Plantar e colher hortaliças em vasos é algo simples, pode ser feito em uma área pequena. Queremos que as pessoas peguem gosto por isso e reproduzam a ideia em suas casas”, explica Elizandra.

A cada dois meses, dois especialistas da Universidade Estadual Paulista (Unesp) vão ao local ensinar mais pessoas sobre o plantio, além de monitorar os vasos já existentes.

A horta comunitária oferece tomate, pimenta, manjericão, hortelã, alface, couve, cebolinha, alecrim, morango, alface, entre outras tantas delícias orgânicas. E também distribui mudas.

No comando da cozinha do restaurante, está Claudenice de Gonçalves Jesus, a Nice. Ela fez cursos com chefs renomados e, com eles, aprendeu vários segredos. “E com amor qualquer comida fica boa”, atesta.

A ajudante Zuleide Seferino da Silva, a Zuzu, é famosa pelo delicioso pudim de leite, o doce preferido pelos frequentadores do bistrô.

Gisele Ferreira gerencia o lugar. Faz as reservas e explica como tudo funciona. “Tem muita gente de outros bairros aqui, temos uma fama, já saímos em vários jornais e programas de televisão”, conta Gisele.

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Bistrô & Café Mãos de Maria
Rua Ernest Renan, 1366, (11) 3739-2217
Aberto de segunda a sexta das 12h às 14h30
Feijoada com pagode no segundo sábado do mês das 12h e sem hora pra acabar
Laje da União de Moradores e do Comércio de Paraisópolis
https://www.facebook.com/Bistroecafemaosdemaria/