cultura

O levante do rap no combate ao fascismo

Extrema-direita em ascensão no país tenta se apropriar do gênero que nasceu dos jovens pobres das periferias urbanas. MC's explicam como esse discurso vai na contramão da história da cultura hip-hop

Rostand Costa

Com sua bagagem nordestina, Diomedes usou suas rimas para atacar Bolsonaro: ‘Não precisamos de mais retrógrados’

Não precisamos de mais retrógrados / Chega de armas, queremos livros

Nós não queremos riquezas em sarcófagos / Sem liberdade não estamos vivos

Vi a pobreza de perto, é um inferno / Senti a dor que nos leva pro crime

Não é um playboy militar que vai opinar / Ou julgar sobre o que nos define

Não tem cabimento, não seja um jumento / Até um cachorro entende essa equação

As mazelas da alma, os trauma e a dor / Se cura com amor, saúde e educação

É com letras assim, de sua música Disscanse Em Paz, que o rapper nordestino João Vittor de Souza Passos, conhecido como Diomedes Chinaski, ataca as candidaturas da extrema-direita nas eleições de 2018. Com a ascensão do discurso autoritário dentro da sociedade e também na arte, os chamados MC’s têm se erguido para aumentar a resistência, com o objetivo de evitar que a cultura ande na contramão.

A música de Diomedes se junta a outras dezenas que repudiam os ideais representados pelo candidato à Presidência da República Jair Bolsonaro (PSL). Rappers da periferia, LGBTs, nordestinos e mulheres se unem para impedir a introdução do ódio e do fascismo na fala do movimento hip-hop. O posicionamento traz comentários negativos e, para alguns, traz redução de seguidores nas redes sociais. Porém, os Mestres de Cerimônia (MC’s) lembram aquele que é um dos pilares do rap: a conscientização política.

A cantora e compositora Bárbara Bivolt, de São Paulo, foi uma das artistas que se posicionou a favor do movimento #EleNão. “Perdi muitos seguidores por me manifestar contra o Bolsonaro, mas se eu conseguir mudar um voto, já é uma vitória. Não dá para ser neutra numa situação dessas porque nenhum lado meu compactua com esse cara”, afirma ela.

Críticas às declarações homofóbicas do candidato de extrema-direita também se refletem nas músicas. “Hipocrisia é mato, homofobia mata. Ignorância é fato. Vocês matam em nome de Jesus, bando de Bolsonaro“, rima a paulistana Drik Barbosa, integrante da Laboratório Fantasma – selo criado por Emicida –, em Poetisas no Topo. Em outras canções, o discurso racista e machista também é criticado. “Na hora do julgamento, Deus é preto e brasileiro/E pra salvar o país, Cristo é um ex-militar, que acha que mulher reunida é puteiro?“, questiona o rapper mineiro Djonga, em Olho de Tigre, famosa pela impactante frase “Fogo nos racistas”.

Há também quem prefira mandar a mensagem de forma mais direta. Rômulo Boca, cantor do grupo A.L.M.A., de São Paulo, é um dos autores da música F.O.B., que critica o candidato do PSL. Na letra, os artistas discutem a ascensão de Bolsonaro e lamentam que, talvez, “Deus não seja mais brasileiro e nem anda ao lado do povo”, como dizem no refrão.

“Hipocrisia é mato, homofobia mata. Ignorância é fato. Vocês matam em nome de Jesus, bando de Bolsonaro”

“A gente lançou uma música contra o Bolsonaro. Quando eu der uma visão política consciente, não quero ter um fã que, ao invés de absorver, diga que não me ouvirá mais. O rap não foi feito para essas pessoas”, explica Boca.

Desde que foi criado, na década de 1970, nos bairros pobres de Nova Iorque-EUA, as batidas e as rimas eram os principais instrumentos para endossar a luta da periferia por igualdade social, das mulheres no combate ao machismo, ou dos negros denunciando o racismo. Já no Brasil, nascido no contexto da pobreza e da violência policial, o Racionais MC’s foi um dos grupos que ganhou destaque, com letras que conscientizavam os jovens a não seguirem o caminho da criminalidade.

Há 30 anos na estrada da música e sendo a principal voz o rap brasileiro, Mano Brown é um dos que resiste contra o discurso conservador e os tentáculos da extrema-direita no gênero. Para ele, há um lado bom na existência de Bolsonaro: a identificação do inimigo há distância. “Durante muito tempo houve pessoas como ele, mas disfarçadas. Ele a gente já vê de longe (quem é)”, disse, em entrevista à Rádio Brasil Atual.

Aliás, a avaliação de Brown é o mesmo fenômeno apontado pelo rapper Jay-Z, nos Estados Unidos. Um dos mais bem-sucedidos artistas do mundo, o músico consegue encontrar uma face positiva na eleição de Donald Trump. Em entrevista ao jornalista David Letterman, ele diz acreditar que as pessoas que pensavam diferente começaram a conversar e se uniram contra ações do atual presidente. “Não se pode tratar de algo que não foi exposto e ele está fazendo aflorar um lado feio do país, que acreditávamos que tinha acabado”, aponta ele, que deposita esperança na força da juventude.

A linha de frente contra o fascismo dentro do hip-hop passa por vários segmentos do movimento. As ações do ex-prefeito João Doria (PSDB), em 2017, contra a pichação e o grafite aumentaram a resistência no meio da tinta spray. A voz do rap também está presente em novas mídias com longo alcance, como o YouTube. O rapper e youtuber Guilherme Treeze, de São Paulo, dono do canal Falatuzetre, com 660 mil inscritos e mais de 80 milhões de visualizações, usa sua visibilidade para orientar os novos fãs a ‘seguirem o caminho certo’.

“Já recebi comentários negativos por me posicionar nas redes sociais, por isso é importante a gente da linha de frente se posicionar. Tenho que me posicionar. Infelizmente, a maioria está dentro do movimento sem entender os fundamentos da cultura”, afirma Treeze.

O muro da resistência também é construído com a presença de nordestinos e homossexuais. O rapper LGBT Lucas Boombeat, nascido na capital paulista, utiliza sua mensagem como ferramenta de cura, em meio aos ataques de ódio. Ele conta que ser homossexual, negro e periférico aumenta ainda mais a responsabilidade em entrar neste debate. “Combato esses discursos de pura ignorância deles com minha vivência, mostrando que podemos ser o que quisermos ser e falar o que nos der vontade”, diz o integrante do grupo Quebrada Queer, o primeiro de rap gay do Brasil.

Já o MC baiano Raí Faustino, o Faustino Beats, classifica como “surreal” a voz de eleitores do Bolsonaro na cultura em que trabalha. Apesar de São Paulo ser considerada o ‘berço do rap’, artistas do Nordeste têm se mostrado firmes contra os retrocessos. “O rap nordestino está acostumado a bater de frente. Antes de 2016, consumia-se muito pouco do som daqui. Talvez por isso esse sentimento de luta se faça presente não só nas músicas, mas também fora delas”, aponta.

LARISSA ZAIDANDon L
Don L critica a apropriação cultural e diz que a presença de Bolsonaro vai afeitar também aqueles que se omitem

Rap de direita

O crescimento do alcance do gênero musical, a despolitização dos artistas e a apropriação cultural sobre o movimento abriu espaço para que novas falas dentro do rap, inclusive da direita, com músicas que enaltecem o candidato Jair Bolsonaro, atacassem movimentos sociais e apoiassem grupos fascistas.

A onda direitista, no Brasil, surgiu em 2015, quando rappers do Rio de Janeiro se juntaram numa roda de rimas em apoio ao movimento Vem Pra Rua, que convocava para o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Utilizando chavões como “transformar o Brasil em Cuba” e críticas ao programa Mais Médicos, a música foi criticada por diversos artistas, fãs e expoentes da área cultural.

Enquanto a direita se apropriava do gênero, não houve uma mobilização dentro do rap contra o golpe de 2016. A omissão do movimento, que sempre fechou as portas para o discurso retrógrado, resultou numa janela aberta, permitindo a sua entrada. A quebra de identidade faz artistas questionarem quando foi que o rap, considerado por diversos artistas como um “salvador de vidas”, começou a aderir à frases como a do “bandido bom é bandido morto”.

Souto MC: ‘A vitória do Bolsonaro pode impactar a cultura no geral. A obsessão que ele tem de atacar a cultura é perigosa’.

“A falta de posicionamento durante o impeachment deve ter influenciado. Já que ninguém proibiu o discurso naquela época, eles vão entrando”, alerta Erick Costa, musicalmente conhecido como Nego E.

Com o país polarizado politicamente, rappers se omitem do debate para não perderem fãs e visualizações nas plataformas de streaming, explica Rômulo, que critica como artistas se tornaram reféns dos próprios fãs. O próprio Diomedes aponta que os novos fãs, em sua maior parte, são reacionários. “Por outro lado, o brasileiro não tem o hábito da leitura. Então, os caras preferem se abster daquilo que não conhecem. Não têm tesão pelo assunto”, lamenta.

O fim da marginalização do gênero musical abriu espaço não só para novos ouvintes, mas também rimadores, inclusive da classe média. Entretanto, desde 2016, artistas negros denunciam a apropriação cultural sobre o rap. De acordo com eles, isso influencia no novo cenário da música.

Cada vez mais o rap tem sido feito por uma posição de privilégio, seja racial ou social, como aponta Faustino. “O problema é que não entendem ou não medem o peso e a influência do seu discurso, propagando ideias nocivas, como relativização do racismo, revisionismo, e até mesmo apologia ao estupro”, analisa.

O rapper nordestino Gabriel Linhares da Rocha, conhecido como Don L, diz que essa apropriação é um dos motivos da omissão por parte dos artistas. Utilizando o rap apenas como fonte de renda, há grupos que não têm compromisso com os pilares da cultura hip-hop. “Quando tem um caso como o do Bolsonaro, você vê para onde eles querem ir. Por conta dos fãs ‘reaças’, você não vai se posicionar com medo de perder a boquinha? Essas pessoas não querem retribuir nada para a cultura”, critica.

Com canais de YouTube se consolidando como as principais mídias do gênero, novos nomescomeçaram a navegar nessa onda. O youtuber Gustavo Lazaro, famoso por fazer vídeo reagindo a músicas, propagou mensagens racistas e de apoio a Jair Bolsonaro. Apesar receber um grande número de críticas e até “deslikes”, seu canal cresceu e já possui 430 mil inscritos.

A defesa de ideias da extrema-direita na boca de youtubers é lamentada por Guilherme. “Esse discurso pró-fascismo do Lazaro eu repudio. Inventei o lance da reação e análise no YouTube, abrindo espaço para pessoas como ele e, infelizmente, as pessoas vão lá e assistem. Gente como ele na cultura é contraditório demais”, critica.

A ascensão econômica da população durante os governos de Lula e Dilma também influenciaram no distanciamento dos artistas com o discurso político em suas músicas. O chamado ‘progresso na quebrada’ fez com que a periferia criasse costumes mais conservadores e próximos do discurso neoliberal, como já apontou o próprio Mano Brown.

“Tenho até parente conservador de periferia, que comprou um Palio 2004 por causa do governo Lula, mas, hoje, colocou um adesivo do Bolsonaro”, exemplifica o rapper Felipe Desiderio, também conhecido como Febem, morador da zona norte de São Paulo.

Futuro em cheque

A eleição de Bolsonaro pode ser nociva também para a cultura hip-hop? No entendimento dos artistas, sim. As propostas que excluem as minorias e ignoram a cultura criam um sentimento de preocupação, principalmente, entre as mulheres e LGBTs.

“A vitória do Bolsonaro pode impactar a cultura no geral. A obsessão que ele tem de atacar a cultura é perigosa”, alerta a paulistana Caroline Souto, a Souto MC, que além de mulher, possui origem indígena. “Eles são inimigos da arte, pois ela ilumina e liberta as pessoas. Governos assim são conhecidos por perseguir os artistas”, acrescenta Diomedes.

As rimas, a batida e o flow, que atuam na propagação da voz dos oprimidos, podem potencializar ainda mais a voz do opressor. O fascismo regendo a nação é visto como uma pedra sobre a ascensão de artistas gays na cultura, já que a homofobia não permite que elas possam depender só de si para ter destaque.

Lucas, por exemplo, lamenta a possibilidade de mais retrocessos. “Seguimos contra a maré desse tipo de discurso de ódio, trazendo cada vez mais dificuldades na nossa vivência, não só dentro do movimento, mas como num reflexo social”, diz.

Já Don L acrescenta que a presença de Bolsonaro vai afetar até os rappers que não se manifestam. “Eles rimam sobre maconha, falam mal de polícia. A polícia vai chegar no show e acabar com a festa. Antes de Bolsonaro, isso já acontecia no Ceará, por exemplo, há 20 anos atrás. Agora, imagina com um presidente que propõe uma volta de 40 anos, quando era pior ainda”, alerta ele.

Apesar dessas novas falas ecoarem dentro do rap, os artistas continuam se manifestando e lutando contra os retrocessos da cultura. Para eles, a oposição à opressão precisa crescer ainda mais, além de conscientizar a população de que há alternativas ao extremismo, como o próprio Diomedes evidencia em sua música: “Não precisamos de mais retrógrados. Chega de armas, queremos livros“.