Comportamento

Faça você mesmo

Mais que acesso a informação, a tecnologia democratiza a produção. À medida que o preço de modernas ferramentas de comunicação cai, fica mais fácil ter uma câmera na mão. Já a idéia na cabeça são outros quinhentos

glauber rocha: Acervo Tempo Glauber

No último Resfest, tecnologia a serviço da criatividade

Muita coisa e ao mesmo tempo. Imagens captadas e editadas no celular, animações com conteúdo filosófico ou só para descontrair feitas num pecezinho, trilhas sonoras elaboradíssimas sem ninguém tocando nenhum instrumento! Tudo a um clique, para ser visto via internet, na tela do computador ou do celular. O cineasta Glauber Rocha (1939-1981), criador e criatura do “faça você mesmo”, iria ao delírio se pudesse ver quanto uma única pessoa é capaz de produzir nesta era sem limites para o audiovisual.

O autor da teoria “uma câmera na mão e uma idéia na cabeça” talvez ficasse surpreso. Mas hoje uma pessoa precisaria de 2 mil anos para assistir a todos os filmes disponíveis em apenas um dos principais sites da rede. Então, no meio da geração nascida na era dos gigabytes, arrisco: quem conhece o diretor de Terra em Transe? Aos 19 anos, com fones nos ouvidos e os olhos fixos na projeção do curta-metragem By Your Side (Do Seu Lado), Laura Teixeira manda ver: “Glauber foi o precursor do ‘faça você mesmo’, da simplicidade da técnica com conteúdo. Nem sei o que ele pensaria hoje, vendo o quanto a tecnologia avançou”, diz. Ponto para as meninas! “Ninguém sabe onde isso vai dar”, conclui a estudante de Imagem e Som, que garante já ter feito muitos filmes só com seu celular.

Os novos seguidores do “do it yourself” (ou faça você mesmo) são bem informados e rápidos. Sabem o que querem. O norte-americano M dot Strange criou um roteiro interativo, recebendo milhares de sugestões de internautas, para seu inspirado We Are the Strange, longa-metragem de animação sobre punk-rock. O cenário foi seu próprio quarto. Os personagens, feitos de meias velhas, luvas de borracha, figurinos de 1 dólar, fios elétricos, brinquedos achados no lixo – enfim, sucata. Comandou a produção, trilha sonora, editou e, claro, dirigiu. Estava em São Paulo, em maio, na versão brasileira do Resfest, festival nascido em Nova York em que as estrelas são as novas mídias. O cineasta, que consumiu três anos no trabalho, ataca: “Quem quer fazer um filme deve fazer um filme. Não há mais desculpa”.

M dot Strange, na verdade Michael Belmont, 27 anos, ganha a vida fazendo o que lhe pedem, de publicidade a vídeos institucionais. “Horríveis, na maior parte.” Mas é assim que banca suas idéias. Seu filme, ironicamente, foi vedete no Festival de Sundance (em Utah, EUA), o maior de cinema independente do mundo. Movido pela paixão e na companhia de um programa Nintendo, marca mais conhecida pelos videogames, fez o filme que acabou sendo aplaudido pelos experts de Hollywood, a fábrica de filmes que tanto critica. M dot Strange diz que não sente orgulho por ter participado do Sundance, mas adora repetir que seu filme – ainda não lançado comercialmente – foi visto mais de 700 mil vezes no YouTube.

mauricio moraisLeandro e Karim
Leandro e Karim: o mundo está em transformação

Vem comigo

O YouTube foi criado em uma garagem há pouco mais de dois anos pela dupla americana Chad Hurley, 29 anos, e Steven Chen, 27. Vinte meses depois, foi vendido ao Google, também cria de garagem, por 1,65 bilhão de dólares. São dois exemplos inspiradores do “faça você mesmo”. O Brasil não tem cinema em escala industrial, mas tem indústria televisiva, da qual a nave-mãe é a Rede Globo, com seu padrão de qualidade que exclui produtores, idéias e, paradoxalmente, lidera e engessa o processo criativo.

Cria-se, assim, a necessidade de ferramentas e formas de exibição alternativas. As novas mídias vão se colocando nesse vácuo, entre uma demanda existente – sim, existe público em busca de opções diferentes – e a oferta originada desses incomodados produtores que buscam outro jeito de mostrar idéias. Só o YouTube reúne 25 milhões de vídeos disponíveis e 9 milhões de internautas passam, em média, 15 minutos por dia no site.

As empresas, aos poucos, rendem-se ao novo. Lorenzo Giunta, produtor executivo da Ioiô Filmes, produtora de São Paulo que trabalha com filmes em película (cinema) e digital, diz que o retorno também é comercial. “Muitas empresas nos procuram, principalmente via agências, para criar vídeos virais para a internet.” Viral porque são “caseiros” e se espalham sem controle no meio on-line. A Ioiô criou um setor específico para tratar dessas novas mídias.

O jornalista Goulart de Andrade, com mais de 50 anos de TV, é um dos ícones mais respeitados no meio. Reverenciado por sua ousadia em seu famoso Comando na Madrugada, que estreou na Globo em 1978, passou por praticamente todas as emissoras de TV aberta do país. No Comando, Goulart de Andrade sai pelas ruas de São Paulo acompanhado de um cinegrafista mostrando o que é notícia: “Vem comigo”, diz. Possivelmente o mais “experiente” repórter em atividade na televisão, Goulart de Andrade é o jornalista inovador e inimaginável de seu tempo. “Acham que eu sou ousado. Eu sou é louco”, garante. “Os jovens devem aproveitar essas ferramentas para expressar o novo, e aproveitar o interesse crescente de patrocinadores e veículos alternativos”, aconselha.

O produtor musical Leandro Marduzzi, 31 anos, segue o conselho. “Minha realidade era estritamente sonora; agora, é visual também. Você vive uma realidade própria, cria a partir do global, mas é único. Com tanta informação, você sai do quintal de casa.” Sua namorada, a designer de bolsas Karim Nakashima, ficou dois meses na China e conta que lá também está acontecendo essa enorme transformação. “E o Brasil começa a se encaixar nessa nova ordem. A tecnologia cria uma linguagem universal e une culturas”, aposta.

A internet, sem censura, é porta de entrada para o experimentalismo. Tem coisas que só se vê na rede, nunca na TV. O bem-humorado vídeo Tapa na Pantera, no qual uma senhora declara seu apreço por um cigarro não-permitido; um americano troglodita que passa o dia comendo cachorro-quente, ao vivo; uma gordinha maluca dançando músicas horrorosas em frente à câmera com roupas justíssimas; clássicos de Shakespeare interpretados por cabeças de gatos em um cenário vitoriano. E povo em frente ao computador, vendo e rindo. Liberdade total de criação e de recreação que leva novos e velhos, amadores e profissionais, ao encontro do novo, do experimental. Tem lixo a dar com pau, claro, mas em meio a tanta quantidade sempre aparece algo que oxigena a comunicação. “A web e a telefonia celular rejuvenescem. Fazem pensar: ‘Vou começar tudo de novo’”, declara Goulart de Andrade, atualmente no Comando da Noite, aos sábados, 22h, na Band.

Os dispositivos tecnológicos estão aí, o acesso é livre e as pessoas passam mais tempo conectadas. Mas assim como na TV brasileira predominam tranqueiras que estão longe de formar cidadãos críticos, liberdade de criação e difusão não é sinônimo de qualidade. O especialista em Jornalismo Multimídia da PUC-SP, André de Abreu, lembra que piadas, correntes, bobagens e sacanagem ainda são os conteúdos de maior audiência da internet. O papel da educação é insubstituível e, no que diz respeito às ferramentas tecnológicas, o bom comunicador é indispensável, defende o professor membro da Academia iBest de Imprensa. “Enquanto ética, independência e credibilidade podem ou não estar presentes nas produções amadoras, no profissional de comunicação esses itens são obrigatórios”, observa. Ou pelo menos deveriam.

filmando Resfest

O futuro no bolso

Sofás e confortáveis cadeiras em volta de imensos telões de plasma, LCD, ou qualquer coisa que inventarem até esta reportagem sair? Não. Você, seus fones de ouvido e um aparelho celular exibindo videoclipes em uma telinha com 16 milhões de cores e qualidade digital. Ao contrário das tevês, que vão ficando cada vez maiores, as ferramentas usadas para produzir e reproduzir conteúdos fora do mainstream ficam cada vez menores, cabem no bolso. A estudante de Arte Maisa Magacho, 21 anos, adora animação: “Você vê de tudo: videoarte, novos clipes com músicas fantásticas e coisas sem-pé-nem-cabeça. Dá até vontade de criar algo”.

Já existem celulares compatíveis com aparelhos de televisão via cabo ou sem fio. Alguns têm flash integrado e redutor de olhos vermelhos, microfone estéreo digital, conexão com a internet, editor de fotos e vídeos e recursos que transformam sonhos de fazer filme em realidade. Para o jornalista e consultor de tendências Jackson Araújo, o celular virou um cúmplice do cotidiano. “É assim que busco o experimental, a poesia e o descompromisso.” Jackson participa de uma experiência que transforma sua realidade. Ele aceitou o desafio de uma grande empresa de telefonia celular. Ganhou um aparelho de última geração e, com mais oito pessoas, mantém um blog. São canais de TV de bolso transmitidos a partir de um celular e via internet, a qualquer momento, de qualquer lugar. “O celular representa a democratização total de conteúdos. É uma nova revolução”, entusiasma-se.

Mas democratização de conteúdo nem sempre significa acesso a tecnologia. Afinal, um aparelho capaz de abrigar uma miniprodutora de vídeo custa em torno de 2.500 reais. Fiore Mangone, diretor de multimídia da promotora do Resfest, é realista: “A internet estará disponível em computador, TV, celular, mas o acesso vai depender de quanto você pode pagar”. E nem tudo cabe em qualquer bolso. Porém, nada que os chamados “ganhos de escala” não resolvam. Basta lembrar como foi o surgimento da televisão, há mais de cinco décadas, ou do videocassete, há menos de 30 anos, ou do celular, ou da câmera digital, no final do século 20: novidades que nasceram custando uma fortuna e em não muito tempo viraram populares.