Viagem

Engana-se quem pensa que o país da ioga é puro mantra. A Índia é lindamente punk

Um lugar que aguça os sentidos, emociona e enraivece. A Índia é sem igual, para o bem e para o mal. Antes de vir, esqueça tudo o que já ouviu falar, incluindo este texto

Cena de Varanasi <span>(Bruno Martins/Instagram)</span>Este rio sagrado move tudo. Vida e morte convergem para um lugar desconhecido <span>(Adriana Cardoso/Facebook)</span>O portão e o Hotel Taj Mahal <span>(Bruno Martins/Instagram)</span>Esse fogo, dizem, foi aceso por Shiva há mais de 3500 anos. "Burning is learning" <span>(Bruno Martins/INstagram)</span>Comidas, comidas, comidas. Muito sabor e algum piriri <span>(Bruno Martins/Instagram)</span>Comidinhas de rua em Varanasi <span>(Bruno Martins/Instagram)</span>Festival das cores celebra primavera e a vitoria de Lord Krishna sobre o mal <span>(Bruno Martins/INstagram)</span>Festival das cores celebra primavera e a vitoria de Lord Krishna sobre o mal <span>(Bruno Martins/Instagram)</span>

Giitu nos pede uma parte do dinheiro da viagem adiantada, pois precisa abastecer, pagar pedágios e taxa de entrada no Rajastão. Para num posto de autoestrada, ainda no estado de Uttar Pradesh, onde o litro da gasolina custa o equivalente a R$ 3,60 pelas minhas contas. Chama-me a atenção a fila de motociclistas para abastecer. Na saída do posto, um outdoor em frente às bombas alerta: “No helmet, no petrol” (sem capacete, sem gasolina).

Comento com Giitu que nenhum dos motociclistas parados para abastecer usa capacete e que o outdoor parece uma ironia. Sem entender o que digo, ele comenta que os motociclistas vinham do Rajastão para abastecer naquele posto porque a gasolina era mais barata. Insisto em minha colocação. Finalmente ele me compreende e diz: “É obrigatório usar capacete aqui. Mas quem vai fiscalizar esse monte de gente?”

Alugamos um carro para nos levar a Jaipur porque o trem atrasaria mais de três horas (atrasos de trem são frequentes na Índia). Um homem nos abordou na estação nos oferecendo o serviço. Empresas e/ou motoristas particulares ficam à espreita de turistas perdidos em rodoviárias, estações de trem, portas de hotel e aeroportos. O dinheiro trazido pelos turistas é muito disputado. Fiquei sabendo que um trabalhador de fábrica bem ordinário ganha cerca de US$ 5  por oito horas diárias de trabalho, uma merreca que mal cobre as despesas básicas, apesar de ser um país barato (para nós, ao menos).

Cinco dólares são 300 rupias, mais ou menos o preço de uma corrida de tuk-tuk do hotel onde estou em Nova Delhi para o aeroporto, que leva 40 minutos. Então, a gente se estressa bastante com a insistência indiana até compreendermos a razão que mora debaixo dos números.

Após negociar o estorno das passagens do trem, o que é possível em atrasos de mais de três horas na primeira classe, negociamos um abatimento de 500 rupias no preço. Foi assim que Giitu, um indiano de 38 anos, entrou em nosso caminho.

Por intermédio dele fiquei sabendo um pouco sobre a Índia. Ele foi um dos poucos indianos que encontrei que podiam falar inglês razoavelmente, algo que me surpreendeu, pois sendo o país uma ex-colônia inglesa achei que houvesse mais gente capaz de falar o idioma da rainha Elizabeth.

Durante o trajeto de cerca de cinco horas numa estrada ok, ele fala muito bem da empresa para a qual trabalha, embora diga que o ofício de motorista é considerado de nível inferior no país, pelo fato de ser um trabalho feito por pessoas sem escolaridade.

“Você frequentou a escola?”, pergunto. Ele diz que não, porque o pai morreu cedo e ele teve de assumir o sustento da família. “E sua mulher?”, continuo. “Também não. Mas meus filhos, sim, frequentam uma boa escola”, diz, com orgulho.

Insisto. “Mas você sabe escrever ao menos o seu nome?” Ele me diz algo como “eu me viro”. Pergunto a ele como aprendeu a falar inglês e ele diz que com os turistas que atende.

Ser mulher na Índia? Ouvi tantas coisas antes de vir e me arrependo por ter seguido algumas. Não trouxe short e passei um calor danado! Li muita informação negativa sobre os homens, mas não me senti mais ameaçada do que me sinto no Brasil

Dois Brasis de analfabetos

Faço uma conta rápida. A Índia possui 1,3 bilhão de habitantes. São seis Brasis (temos pouco mais de 200 milhões). O índice de analfabetismo na população acima de 15 anos é de 34,9%, o maior entre os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). Para efeito de comparação, o nosso está na casa dos 12%. Ou seja, a Índia possui dois Brasis inteiros de analfabetos e isso explica muita coisa sobre o que vemos aqui.

Um ponto importante: sem levar em consideração as enormes diferenças culturais e religiosas, boa parte do que vi na Índia eu já havia visto no Brasil e continuo vendo todos os dias. Há, sim, muita pobreza, muita sujeira nas ruas, gente que faz suas necessidades fisiológicas nas calçadas, como em São Paulo, favelas, falta de saneamento básico, gente sacana querendo se dar bem em cima de turista, gente pedindo esmola, transporte precário, trabalho precário, uma desigualdade social imensa e bla bla bla bla.

Mas, obviamente, tudo aqui é superlativo e eu fico imaginando o desafio de cuidar/educar esse tantão de gente. Pense nos nossos problemas multiplicados por seis. É isso. Por isso muita gente acostumada a roteiros mais “limpinhos” no Brasil, se assustam quando chegam aqui.

De tudo o que vi, o que mais me assustou foi o trânsito. Carros, ônibus, bicicletas, tuk-tuks, vacas, cachorros vira-latas, pedestres… É um caos danado movido a buzina. A seta não existe. Farol? Vixe Maria! Tudo o que vão fazer, os motoristas sinalizam com a buzina. Na estrada, vão ultrapassar e já vão buzinando e enfiando o carro. O pedestre vai atravessando a rua e levantando as mãos para pedir passagem.

Já vi famílias inteiras numa scooter: um filho na frente, o pai, outro filho e a mãe atrás. Ou três amiguinhos e amiguinhas compartilhando as duas rodas. Vi pouquíssimas pessoas usando capacete que, por sinal, pode ser comprado em barracas na rua. Vi também muitas crianças pilotando motos (aqui é como no Brasil, licença só é concedida a partir dos 18 anos).

Mas querem saber de uma coisa? Nesses dias que fiquei aqui e em todos os lugares por onde passei, não vi um acidente, nenhum atropelamento, nenhuma batidinha sequer, embora tenha visto alguns carros meio amassadinhos. Há uma ordem com códigos velados dentro do caos e eles se entendem bem assim. Não há fiscalização e os indianos aprenderam a viver desse jeito.

Querem saber de outra coisa? Sinto-me muito mais segura na Índia do que no Brasil. Imagine tuk-tuk em São Paulo, a gente parado no trânsito com bolsas e malas, expostos desse jeito?

A população não anda armada na Índia. O povo bebe, mas, por questões religiosas, muito pouco. Inclusive, só consegui beber nos hotéis e restaurantes para turistas. Droga? Maconha existe, e ofereceram na rua. Mas não há aqui um tráfico de drogas na proporção que conhecemos em nosso país/continente.

Sobre armas, só vi mesmo o exército e a polícia armados. O primeiro toma conta da segurança dos aeroportos. Logo que você chega, já passa numa triagem. Familiares não podem entrar junto. É só quem vai viajar mesmo. Trens, metrô e boa parte dos sítios turísticos possuem detector de metais e policiamento. Isso porque a Índia já foi vítima de atentados terroristas (o último foi em 2008, no metro de Mumbai) e há tensões com países vizinhos, como o Paquistão (este por conta do território da Caxemira).

Eles são pacíficos

Há diversas religiões aqui, entre as maiores estão o hinduísmo, islamismo, budismo e cristianismo e, aparentemente, todas convivem bem. Boa parte da população é vegetariana, seja pela herança das castas, da religião ou porque não tem dinheiro para comprar carne. Poderia dizer que a Índia é o paraíso dos vegetarianos (ou “semivegetarianos”, como eu), SQN. O tempero é forte, cansa o paladar e sempre desemboca no famoso piriri (acabei com o meu estoque de Floratil).

Li num livro que os indianos são pacíficos justamente porque não comem animais. A relação com estes é de muito respeito. Vacas, macacos e elefantes são sagrados do hinduísmo. Por onde vamos, há vacas andando tranquilamente no meio do tráfego e macacos Rezhu escalando prédios. Os indianos os alimentam e isso já trouxe problemas.

Houve registros de mortes por ataques de macacos (uma menina caiu da sacada do prédio após ser atacada por um) e um elefante pisoteou em uma criança num ritual. O governo já fez campanhas para que a população não os alimentasse, mas não adianta. A crença é maior que tudo.

Sobre ser mulher na Índia? Bem… Eu ouvi tantas coisas antes de vir para cá e me arrependo por ter seguido algumas delas. Por exemplo: não ter trazido shorts. Passei um calor danado! Li tantas informações negativas sobre os homens e, confesso, não me senti mais ameaçada aqui do que me sinto no Brasil. Mas, claro, devo considerar que estou acompanhada.

Houve aquele caso horrível de um bando que estuprou uma estudante de medicina num ônibus em Nova Delhi (há um doc sobre o caso na Netflix, chamado As filhas da Índia) e muita coisa mudou desde então. Por quê? A população foi às ruas, incluindo os homens. No Brasil, homens ejaculam em mulheres no transporte público, houve aquele estupro coletivo de uma menor no Rio e o que a nossa sororidade fez? Continuou cuspindo textinhos raivosos no Facebook por trás das hashtags.

Há no metrô e trens vagões separados para mulheres, doentes com câncer, pessoas com deficiência. Há quem não respeite muito (como no Brasil), mas no geral funciona. As leis para o estupro também ficaram mais severas, com a pena capital.

Num país com mais homens do que mulheres, elas também são as menos escolarizadas. Enquanto 82% deles são alfabetizados, pouco mais de 60% delas o são.

Os casamentos ainda são arranjados aqui, muito por conta das castas. O próprio primeiro-ministro Narendra Modi casou-se aos 18 anos, em 1968. Porém, li que o casamento dele foi arranjado e nunca consumado. O tema só veio a público em 2014, quando ele concorreu nas eleições. Ele não tem filhos e vive como um solteirão (uma pessoa me disse que ele tem feito um bom governo porque tem um bom darma e isso traz boa sorte ao país).

O guia do barco que nos levou ao passeio pelo Ganges nos disse que ele será o próximo da família (ele tem 27 anos) a ter o casamento arranjado (a família da noiva paga o dote). Quando perguntamos se é possível casar por amor na Índia, ele nos diz: “É melhor casamento arranjado. Casamento por amor sempre acaba em briga”. 

A exemplo dos marajás de antigamente, os homens mais ricos podem ter mais do que uma esposa. Se o próprio Shiva teve, por que eles não?

Muito louca

A Índia, meus amigos, é, de longe, a terra mais louca onde já pisei. É como se a idade da pedra se fundisse com a modernidade num só lugar. As tradições persistem e ainda são muito fortes e, ao mesmo tempo, vemos um mundo influenciado pelo Ocidente (leia-se EUA), em redes como Starbucks, Burguer King, McDonald’s, em programas de TV como The Voice Índia e na própria língua (nas novelas, nos programas de TV e no dia a dia é comum ver a mistura do inglês e do hindi nas falas).

Porém, como os economistas gostam de dizer, se esse país quiser mesmo ir longe, terá de educar a sua gente e elevar a eficiência e produtividade, que são bem fraquinhas (os serviços aqui são bem ruizinhos, com pouquíssimas exceções mesmo).

Engana-se quem pensa que o país da ioga é puro mantra. A Índia é punk. Aguça todos os sentidos ao mesmo tempo que os cansa. Emociona e enraivece. É um país único, sem igual, para o bem e para o mal.

Antes de virem, esqueçam tudo o que já ouviram, incluindo este texto. Venham sem preconceitos, pois olhar para a Índia é nada mais que ver um pouco da alma brasileira que não queremos ver todos os dias.

Ressignificados

Li um artigo numa revista dizendo que Varanasi deveria ser o último destino da viagem. Se fosse o primeiro, corria-se o risco de desistir da jornada. A cidade sagrada indiana pode, sim, ser uma experiência “impactante”. Mas, com todo o respeito, quem disser que não gostou é porque não entendeu o que se passa aqui.

Há um rio, o Ganges, rio sagrado que move tudo. Vida e morte convergem para um lugar desconhecido. Sim, para nós ocidentais é perturbador assistir às cerimônias de cremação que acontecem às margens do rio em ritmo de fábrica. E, enquanto os corpos se purificam na chama sagrada de Shiva, pessoas se banham, lavam roupas, animais fuçam o lixo ao redor em busca de comida. E tudo parece para eles estar em seu devido lugar.

É a vida que flui seguindo o curso do rio, enquanto o fogo encerra o ciclo dela por aqui. Do corpo do homem sobra o coração (na verdade, o osso do peito), que é jogado no rio pelo filho mais velho. Da mãe, o filho mais novo joga os ossos do quadril. Crianças, grávidas e líderes religiosos têm seus corpos amarrados com uma pedra e jogados no rio, pois já são considerados puros e, por isso, não precisam ser queimados.

Os hansenianos também são jogados nas águas, mas por outro motivo: para que tenham a chance de reencarnar e se “purificar” em outra vida. Na cidade, fomos brindados com cerimônia hinduísta em homenagem a Shiva. Não há como sair daqui sendo a mesma pessoa de antes, porque os sentidos de viver são completamente ressignificados.