A Jamaica é aqui

Segunda pátria do reggae, Maranhão cria museu para eternizar o som da radiola

Casa foi inaugurada em janeiro no centro histórico de São Luís. Gênero, que se popularizou no estado desde os anos 1970, superou preconceito do público e de governantes

Ademar, DJ e primeiro diretor do Museu do Reggae: "A população conheceu, incorporou e tomou para si" <span>(divulgação)</span>O músico Fauzi Beydoun, criador da Tribo de Jah, doa guitarra de primeiro show para o acervo do museu <span>(divulgação)</span>Em antigo sobrado no centro histórico da capital maranhense, o Museu do Reggae foi inaugurado em 18 de janeiro <span>(divulgação)</span>Museu apresenta informações sobre as referências do gênero, como a expressão máxima de Bob Marley <span>(divulgação)</span>Área do museu revela a simbiose entre duas culturas: reggae e djs em nome da música que inspira a paz <span>(divulgação)</span>Fauzi Beydoun, da Tribo de Jah, e o DJ Ademar: parceria em prol da difusão da cultura do reggae <span>(divulgação)</span>Museu atesta que o reggae se tornou uma manifestação cultural do Maranhão: espaço para cultura de raiz  <span>(divulgação)</span>

Como é bonito!
Povo reggaendo liberdade
(…) Nas luzes buscam inspiração
Nas estrelas cadentes, nos espaços
O orvalho da miscigenação
Madrugando costumes e compassos
Mestiçando Jamaica e Maranhão
(Luzes e Estrelas, Inaldo Bartolomeu)

Se por motivos óbvios a Jamaica é a pátria-mãe do reggae, o estado do Maranhão tornou-se uma segunda nação do gênero. Que teve de percorrer um caminho pedregoso, porque o reggae, tal qual aconteceu um dia com o samba, era visto como coisa de “marginais” e relegado a um certo perímetro, à periferia de São Luís, até ganhar outras faixas de público e certa tolerância, inclusive do poder público.

Essa nova visão se materializou em 18 de janeiro, quando foi inaugurado, em um antigo sobrado no centro histórico da capital maranhense, o Museu do Reggae, o primeiro dedicado a essa cultura – fora, evidentemente, da terra de Bob Marley (1945-1981).

É difícil tentar explicar como os maranhenses adotaram o reggae, a ponto de torná-lo uma manifestação cultural própria. “São dezenas de fatores”, diz o DJ Ademar Danilo, que se tornou o primeiro diretor do museu. “A população conheceu o reggae, incorporou e tomou para si”, resume Ademar, 55 anos, comandando programas de rádio há 34 e fã desde a pré-adolescência.

Um de seus parceiros no início de jornada foi o músico Fauzi Beydoun, um dos criadores, ainda nos anos 1980, do Tribo de Jah, grupo seminal do reggae no Brasil. Dois dias antes da inauguração, Fauzi doou a guitarra usada no primeiro show para o acervo do museu. “Um instrumento musical que viajou o mundo levando o nome do Maranhão”, escreveu Ademar. Nas primeiras duas semanas, foram 3 mil visitantes – 700 apenas nas 24 horas iniciais. Exatos 3.217, sendo 62 de outros países.

“É a vitória do reggae sobre o preconceito, as discriminações e o racismo”, celebra Ademar, destacando a participação do governo estadual no processo que permitiu a viabilização do museu. “Ao longo de quase 50 anos, a única relação com o poder público era de repressão. Antigamente, o que nós tínhamos era a polícia que fechava festa, a Secretaria de Segurança Pública negando autorização, a prefeitura que negava o alvará para o bar, mesmo com outros bares funcionando na mesma rua.”

Não foi só com o poder público. Houve certo estranhamento inclusive entre defensores de ritmos tradicionais, como o bumba-meu-boi e o tambor de crioula, como se o reggae fosse uma ameaça à memória cultural do estado. “Inicialmente, pelos meados de 80, havia um baque com grupos tradicionais. De certa forma, causou um desconforto para muita gente”, lembra o professor e pesquisador Carlos Benedito Rodrigues da Silva, do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA).

Identidade cultural

Teria sido uma reação mais do ponto de vista do mercado que da produção cultural em si, avalia o pesquisador, para quem o próprio reggae se tornou uma manifestação cultural própria do Maranhão, mostrando que há espaço para tudo aquilo que tem raiz. Ele destaca a letra de um grupo de bumba-meu-boi, em Pedro do Rosário, município da Baixada Maranhense, citado no início deste texto, para mostrar que até mesmo os chamados brincantes “reconhecem a importância ou o significado do reggae como um dos componentes representativos da identidade cultural do Maranhão”.

“É importante perceber que, no processo de distribuição dos produtos culturais pelos sistemas midiáticos, muitos movimentos rítmicos cresceram e desapareceram ao longo das últimas décadas em várias partes do país. E se alguns deles permaneceram e ganharam força ampliando seus espaços de realização é porque, sem dúvida, têm uma significação maior que os modismos momentâneos para as populações que os consomem”, anota Carlos Benedito.

Ele observa que o reggae, enquanto movimento social, já têm décadas de presença no Maranhão, “mobiliza gente, tem cadeia produtiva”, tem peso na economia local. “O que parece que está acontecendo é o reconhecimento do Estado”, acrescenta, referindo-se ao museu. “Durante muito tempo, a relação da sociedade de uma forma geral sempre foi de muito preconceito, como aconteceu com outras manifestações populares brasileiras.” 

O professor considera apropriada a comparação com o samba, em suas origens. “Essas manifestações populares, adotadas pela população de baixa renda, sempre foram vistas como espaço de marginal. O reggae também passou por esse processo, com a polícia fechando festas, mulheres que cantavam perdendo o emprego”, observa.

Vindo basicamente da população negra – mais de 80% dos 7 millhões de maranhenses – e pobre, o reggae se espalhou por outros setores da sociedade, ganhou as rádios e se consolidou, sendo usado inclusive em propagandas e campanhas eleitorais. Assim como Ademar, o professor da UFMA diz que há várias explicações possíveis para a expansão do gênero no estado, que chega a ser chamado de “Jamaica brasileira”. 

Resistência

“Por um lado, tem uma tradição de se ouvir ritmos caribenhos. E a chegada de marinheiros trazendo discos foi despertando interesse”, diz Carlos Benedito. Seja como for, o reggae não chegou “pelo Estado ou pela indústria cultural”, mas pela periferia. “O que se toca nas festas é o reggae jamaicano, de raiz. A diferença é mais em termos de dança. Criou-se em torno disso uma linguagem, um vocabulário. Essa atitude mais politizada (característica do país de origem) é muito mais recente.”

O jornalista Jotabê Medeiros conta, em texto, que São Luís ajudou a chamar a atenção de Gilberto Gil para a importância do gênero, que ele já havia conhecido em Londres, durante seu exílio forçado pela ditadura. Gil narrou ao repórter que escutou No Woman No Cry (1974), lançada em 1974 por Bob Marley e The Wailers, em uma barraca de praia no Maranhão, na primeira metade dos anos 1970. Em 1979, ele gravaria a versão Não Chore Mais.

Neste 6 de fevereiro, quando o mais famoso cantor jamaicano completaria 73 anos, ocorre naquele país o simpósio “A Alma Rebelde e o Choque das Culturas – A Globalização do Reggae e seu Impacto em Outras Culturas”. Ademar foi convidado para dar palestra.

Para ele, o reggae é um fenômeno de resistência, “a ponto de se tornar mais um elemento cultural, que ajuda a formar o comportamento do maranhense”. Também formou uma ampla cadeia produtiva, relevante para a economia, além do próprio turismo, que o museu deve impulsionar. “É feito para os maranhenses, mas atrai muita gente”, diz, lembrando que o projeto teve “vários pais e várias mães” e destacando o fato de, pela primeira vez, o Estado participar. “Essa discussão nunca esteve na mão do governante algum. No máximo, havia tolerância. Respeito mesmo, só agora.” O museu é mantido pelo estado – o governador Flávio Dino (PCdoB) participou da inauguração.

Com a ideia do museu na cabeça, Ademar visitou a Jamaica, onde foi recebido por Jimmy Cliff (que completará 70 anos em abril) e outros ícones. Mas em relação ao modelo adotado para a casa, Ademar afirma que a proposta é priorizar o reggae produzido no Maranhão, os grupos e os colecionadores locais. Ele conta que existe, inclusive, a Associação dos Grupos de Colecionadores de Reggae, a Agrucorem, que reúne fãs do vinil. Discos, gravações, fotografias são alguns itens do acervo. Não faltarão, também, as famosas radiolas, equipamentos de som usados nas festas. Marca registrada do reggae maranhense, a radiola continua tocando alto na praça.

Museu do Reggae Maranhão
Rua da Estrela, 124, centro de São Luís
Funcionamento: de terça a sábado, das 10h às 20h e domingo, das 10h às 13h