Entrevista

Depois dos primeiros 4.900 km pelo Nordeste, Lula planeja próximas caravanas

Ex-presidente pega carona em ônibus com mídia independente e fala de futuras viagens – em especial para as várias regiões de Minas – e do significado de uma retomada progressista no Brasil para a América Latina

Ricardo Stuckert

“Estão muito mais preocupados em agradar a alguns agentes do mercado do que agradar ao povo”

Na  viagem de 25 minutos entre Teresina, capital do Piauí, e a cidade de Timon, do outro lado do Rio Parnaíba e em território maranhense, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou seu ônibus e subiu no que levava jornalistas da imprensa independente que cobriam a viagem desde o início no dia 17, em Salvador. Uma entrevista coletiva foi improvisada.

Lula comparou a atual edição da caravana com a de 23 anos atrás e disse que hoje as pessoas têm uma memória consolidada dos resultados de seu governo na vida dessas cidades e suas populações. Disse lamentar que o governo de Dilma Rousseff não tenha dado andamento ao projeto de regulação dos meios de comunicação que o ex-ministro Franklin Martins deixou pronto. “Lamentavelmente, não andou. Alguém foi buzinar no ouvido da Dilma.”

O ex-presidente sofreu com o calor que fazia dentro do veículo, mas não deixou de responder às perguntas. “Eu não tenho a menor preocupação com o que a grande imprensa está falando. Não fiz a caravana pra eles divulgarem. Fiz a caravana pra sentir como está o povo”, disse.

Lula comentou também sobre a importância do Brasil para a retomada do processo de integração em bloco da América Latina. E defendeu, caso venha a disputar a eleição em 2018, que seja proposto um plebiscito revogatório, para que a sociedade se manifeste sobre ações que vêm sendo executadas pelo governo Temer que devam ser anuladas,

Mas é preciso prestar atenção na correlação de forças, ele alerta. “Não adianta dizer que o Congresso Nacional não presta, que está podre. Esse Congresso é a cara política da sociedade no dia da eleição”, diz, observando também que não adianta eleger um presidente de esquerda com 60 milhões de votos e apenas 60 deputados – em 513. “Brinco sempre com os companheiros sem-terra: hoje no Congresso tem só três deputados deles, mas temos 200 deputados da bancada ruralista. É preciso que a gente transforme as nossas angústias e reivindicações em votos, para que possamos ter uma maioria para as reformas necessárias, senão só fica no discurso.”


Como está vendo esta caravana, em comparação com a Caravana da Cidadania (realizada em 1993). Como se sente, sendo quase um pop star?

Há uma diferença nas duas caravanas. Na primeira, era uma pessoa conhecida, mas não tinha tido ainda a experiência de governar o Brasil. O que mais me impressiona é que a imprensa tenta desmontar o legado da passagem do PT pelo governo, mas não conseguem. As coisas que mais ouço é que as pessoas têm na cabeça os valores das políticas de inclusão, a começar pelo Bolsa Família, que é o mais importante dos programas. Depois, a questão do emprego, dos salários, do PPA, do seguro safra, do Pronaf, do Luz para Todos. São programas que calaram fundo na alma das pessoas, e não há Globo da vida que consiga desmontar.

Uma coisa é a televisão tentar evitar que um cara que nasceu e morou na Avenida Copacabana ou na Avenida Atlântica, ou nas melhores avenidas de Salvador e de São Paulo, que já nasceu sobre o asfalto, com energia elétrica, com as conquistas que agora a gente está fazendo chegar nas pessoas pobres, compreenda a importância de um programa desses. Mas as pessoas que viviam na necessidade não esquecem. A caravana mostrou isso.

A segunda coisa que eu sinto é que houve uma evolução na sociedade, entre a primeira e a segunda. Houve conquistas no campo socioeconômico. E o que estão sentindo agora é que eles estão perdendo aquilo que foi o acúmulo de conquistas. Estão começando a perder com a diminuição de dinheiro do Bolsa Família, para o crédito estudantil. As diminuições dos recursos para a educação, para os programas, começam a dar resultado negativo na compreensão do povo. Essa é outra coisa que notei muito forte.

A outra coisa que notei, e fico agradecido, é que… Quando estava no sindicato ainda, todas as coisas que eu fazia de correto dizia que eu era o resultado do crescimento da consciência política dos trabalhadores. Na medida em que eles evoluíssem, eu evoluiria. Na medida em que eles involuíssem, eu também involuiria. Sinto que essas pessoas têm noção também que foi a participação delas que ajudou a gente a obter o sucesso que a gente obteve no governo, daí a gratidão que eles têm por nós.

Eles continuam agindo como se o povo não fosse povo, como se o povo fosse gado. Ou seja, o povo não tem sentimento, não tem necessidades, pobre é um dado estatístico e não tem que se dar importância para eles

Acredito que, em política, a gente não deva ficar acreditando em agradecimento, tem que ter consciência de que a gente é eleito para servir, independentemente de as pessoas agradecerem ou não. Se você está convencido que a política está dando resultado, precisa fazer sempre o seu melhor, como diz o jogador de futebol. Só dando o seu melhor para poder resolver os problemas.

Fico lisonjeado com a expectativa que as pessoas têm de que a gente possa resolver a crise brasileira. Estou convencido que podemos resolver a crise. A crise que nós estamos vivendo, no Brasil, é, primeiro, uma crise de compromisso. As pessoas que estão exercendo os mandatos não têm compromisso com o povo brasileiro. A segunda é uma questão de credibilidade. É um presidente que não tem legitimidade para falar com a sociedade, portanto, ninguém leva a sério. Terceiro, é que eles fizeram uma opção de atender o mercado naquilo que o mercado entende que deva ser destruído do ponto de vista das conquistas da sociedade. É uma coisa profundamente lamentável. Eles não têm dimensão do prejuízo para o país com a diminuição das políticas sociais. Não têm dimensão que a aposentadoria rural é a base do funcionamento da economia em milhares de municípios brasileiros, quase todos pequenos.

Eles continuam agindo como se o povo não fosse povo, como se o povo fosse gado. Ou seja, o povo não tem sentimento, não tem necessidades, pobre é um dado estatístico e não tem que se dar importância para eles. Estão muito mais preocupados em agradar a alguns agentes do mercado do que agradar ao povo. E eu tenho em mente que o povo é a solução para os problemas do Brasil, a única coisa que pode salvar a economia brasileira é esse povo voltar a ter financiamento, a ter crédito, a trabalhar e ganhar salário, para que ele possa fazer a economia voltar a funcionar. Fora disso, é só discurso.

Ricardo Stuckert
‘Acho que é apenas uma questão de tempo para a gente voltar a governar’

Qual a sua opinião sobre o papel da mídia alternativa na caravana?

É a primeira experiência viva de uma competição. Quando resolvi fazer a caravana, nunca tive nenhuma expectativa com a imprensa, da mesma forma que não tive em 94. Se eu fosse analisar o comportamento da imprensa, não faria as caravanas. A seriedade da cobertura de vocês já fez até com que alguns meios de comunicação viessem para cá, talvez para falar mal, mas vieram. O que é importante é que, mais uma vez, a imprensa estrangeira está dando banho na imprensa brasileira. Estão fazendo uma cobertura com destaque. A matéria do The Guardian é muito muito boa.

Quando a gente faz uma coisa dessas, não quer que as pessoas só vejam coisas positivas. A gente quer que as pessoas retratem a verdade. O que não pode é, num lugar que tem 10 mil pessoas, você escolher um só que esculhamba, e passar a ideia de que aquilo é o que está acontecendo. Eu sei que alguns setores da grande imprensa tentaram negar uns atos. Alguns faziam fotografias bem antes para tentar mostrar praça vazia.

Eu sei que alguns setores da grande imprensa tentaram negar uns atos. Alguns faziam fotografias bem antes para tentar mostrar praça vazia

Cada vez mais a gente tem que apostar nessa forma de comunicação de vocês. Talvez a gente ainda seja primário, mas o dado concreto que vai ficando cada vez mais nítido é que nós não precisamos nos submeter aos caprichos das grandes emissoras de televisão. A gente sobrevive sem eles.

Qual a importância da volta ao poder para a América Latina?

Acredito que voltar a governar o Brasil, recuperam-se governos progressistas em vários países da América Latina. O Brasil é um país que tem muita importância num chamamento à organização da América do Sul, na conclusão da organização do nosso continente, faz com que a gente possa fortalecer muito a Unasul e ter muitas vitórias pela frente. Acho que é apenas uma questão de tempo para a gente voltar a governar. O papel do Brasil é de quem tem que ter consciência da sua importância econômica e política. Ele não pode ter a hegemonia que os Estado Unidos têm. O Brasil e o PT têm que ter uma política de compartilhamento, de participação, de fazer as coisas que interessam a todos, não só para o mais forte. Não é o papel de coordenar, mas o de indutor.

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Já decidiu se fará outra caravana?

Já. Não posso parar porque o Brasil não é só o Nordeste, tenho que ir às regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e Norte. Estou querendo fazer Minas Gerais, por uma razão simples: é um estado muito distinto, você tem Minas carioca, Minas paulista, Minas nordestina, Minas Brasília e Minas mineira mesmo. Eu gostaria ir ao Vale do Mucuri, Vale do Jequitinhonha, Vale do Rio Doce, depois andar pelas outras regiões. Eu pretendo repetir a caravana das águas. Tudo tem que acontecer até março/abril do ano que vem.

Por que foi tão difícil combater o monopólio da mídia quando estava na presidência?

Não é que foi difícil. Fiz uma conferência sobre comunicação em 2009. Nós elaboramos um programa de regulação da comunicação naquele ano. Estávamos vivendo o último ano de governo e decidimos que não era prudente você entrar com um projeto no último ano. Era importante esperar as eleições e o novo governo entrar. Lamentavelmente, não andou. Alguém foi buzinar no ouvido da Dilma.

O dado concreto é que temos que levar em conta a correlação de forças. Isso, durante a campanha de 2018, teremos que discutir. Não adianta eleger um presidente da República com 60 milhões de votos e depois ter apenas 60 deputados. É necessário construir uma maioria de pessoas que queira mudar o Brasil. Por isso defendo que a gente tenha alguns pontos, que são quase princípios, para obrigar o povo a exigir do cara que ele vai votar que se comprometa com aquilo.

Desta vez, um chutômetro meu, temos que propor um plebiscito para que possamos governar o país outra vez. Fizeram muitas coisas erradas, estão desmontando o Brasil.

Revogando as últimas medidas aprovadas?

Para você não fazer de forma atabalhoada, tem que pegar a garantia do povo para que se possa fazer. Por isso, acho que o plebiscito revogatório seria uma coisa boa. Desde a PEC dos gastos, você limita por 20 anos os gastos, eu não penso como eles. Por isso, não limitaria os gastos, isso é uma questão de hombridade, seriedade. Eu dizia pra todo mundo, quando era presidente, que você aprende dentro de casa. Minha mãe dizia “você não gasta o que você não tem, e se tiver que fazer dívida só faça se você pode pagar”.

(Voltando à pergunta da comunicação) Então, para fazer uma regulação dos meios de comunicação, precisamos de uma nova conferência, atualizar o projeto, tendo em conta que não estamos propondo um modelo cubano, estamos pensando na Inglaterra, na Alemanha. É a coisa mais liberal possível.

A gente quer é o seguinte: a Globo, para me avacalhar por 10 anos, não precisa pedir licença para um juiz, ela pode mentir a meu respeito todo santo dia e toda hora. Eu, para pedir um direito de resposta, tenho que ter autorização de juiz. Então, é uma coisa muito desigual. Não quero me intrometer nas novelas da Globo, o que eu quero é que a Globo tenha consciência de que se ela quiser ter opinião política, tem que ter editorial. Mas quando for noticia, tem que ser honesta e quem for ofendido tem que ter direito de resposta.

Não adianta dizer que o Congresso Nacional não presta, que está podre. Esse Congresso é a cara política da sociedade no dia da eleição

Além disso, não dá pra continuar com nove famílias mandando nos meios de comunicação.

Não adianta dizer que o Congresso Nacional não presta, que está podre. Esse Congresso é a cara política da sociedade no dia da eleição. No dia da eleição, quando o povo foi votar, aquele resultado foi a cara nossa. A gente queria aquilo.

Brinco sempre com os companheiros sem-terra, um dos movimentos mais sérios do Brasil, hoje no Congresso tem só três deputados deles, mas temos 200 deputados da bancada ruralistas. É preciso que a gente transforme as nossas angústias e reivindicações em votos, para que possamos ter uma maioria para as reformas necessárias, senão só fica no discurso.

Como o senhor vê os ataques recentes à Venezuela?

Acho pobre a decisão do Brasil. Aliás, o que predomina é o complexo de vira lata. Nada para a América do Sul e tudo para a América do Norte. Não concordo com tudo que acontece em cada país. A única coisa que eu concordo é que tem de respeitar a autodeterminação dos povos. Não gosto do Trump, mas ele foi eleito, então tenho que me calar.

Não cabe ao governo brasileiro gostar ou não do Maduro, quem tem que gostar dele são os venezuelanos. O Maduro não tem que agradar a nós, tem que discutir os problemas do povo da Venezuela. Acho um baixo nível o comportamento do Brasil de não respeitar. A elite brasileira nunca gostou da América do Sul. Nós vivemos o melhor momento da relação no tempo de (Hugo) Chávez, Cristina Kirchner, eu. Um momento de ouro e cometemos um pecado de não transformar a nossa relação em instituições multilaterais e definitivas.