Sociedade

Perus, um encontro de histórias para preservar a memória

Bairro da periferia paulistana, cenário da vala clandestina com mais de mil ossadas, abriga histórico de mobilização social. Mudanças políticas preocupam grupo responsável pelos trabalhos de análise

Carla Borges

Moradores vão ao laboratório. Peritos apontaram 25 casos de lesões compatíveis com projétil de arma de fogo

Em Perus, na região noroeste da cidade de São Paulo, a 30 quilômetros do coração da capital, surgiu, em 1926, a Companhia Brasileira de Cimento Portland. A Cimento Perus foi a primeira fábrica do setor no Brasil. Dali, na década de 1960, se desencadeou o movimento conhecido como greve dos sete anos (1962-1969). O episódio marcante da luta operária do século 20 entrou para a história da cidade tanto quanto o pioneirismo da fábrica para o desenvolvimento econômico local. 

No ano de 1990, porém, a memória do bairro ficou marcada por uma triste descoberta: no Cemitério Dom Bosco, inaugurado em 1971, havia uma vala clandestina com mais de mil ossadas, parte delas presumivelmente de vítimas da ditadura. No primeiro sábado de julho, um encontro reavivou a memória e aproximou gente e histórias de quem vive e de quem descobriu Perus.

Um grupo de 30 pessoas, entre moradores e técnicos envolvidos com a recuperação e análise das ossadas, se reuniu na casa que abriga o Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (Caaf), na zona sul paulistana, para trocar experiências e discutir possíveis ações conjuntas. “Foi um encontro de informações, de sentimentos”, define o ex-ministro e ex-secretário municipal de Direitos Humanos Rogério Sottili, destacando a “simbologia” da região, “importante não só para Perus, para os familiares (dos desaparecidos), para o passado, mas para o país”. 

Para Sottili, agora diretor executivo do Instituto Vladimir Herzog, existe um estigma sobre Perus, como ali só existisse uma vala clandestina. Ele cita, entre outros fatos que envolvem a comunidade, a greve dos chamados queixadas, na Cimento Perus, fábrica tombada em 1992 como patrimônio histórico da cidade. O apelido surgiu em 1958, ano de uma paralisação que durou 46 dias. Queixada é uma espécie de porco selvagem, um animal que bate o queixo e que quando em perigo se une para enfrentar o predador.

No caso das ossadas, a história já é conhecida. Durante duas décadas, elas ficaram expostas a condições inadequadas, que reduziram as possibilidades de identificação. Mas os familiares nunca desistiram de cobrar, e a partir de 2014 formou-se o Grupo de Trabalho Perus (GTP), integrado pela Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos e a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Começava uma nova etapa, que resultou na formação de um inédito Caaf, vinculado à universidade.

De acordo com balanço divulgado no final de março pelo coordenador científico do GTP, o médico-legista Samuel Ferreira, haviam sido analisadas 626 das 1.049 caixas – 159 tinham mais de um corpo. De 610 identificados, 481 eram homens e 129, mulheres. Os peritos apontaram 25 casos de lesões compatíveis com projétil de arma de fogo. Já haviam sido realizadas 74 coletas de 31 famílias, 10 das quais nunca tinham doado material genético. 

Organização

Nascida em Perus, a educadora Maria Helena Bertolini Bezerra era criança na época de construção do cemitério, inaugurado em 1971. Era uma novidade para o bairro, já que o cemitério mais próximo ficava em Caieiras, município vizinho – as pessoas iam lá só para ver a obra. Caso do avô de Maria Helena. Ela se lembra dele contando que chegavam por ali viaturas e camburões e histórias de gente sendo enterrada de qualquer jeito no local. As informações circulavam pelo bairro, onde as pessoas sempre se conheceram. A dimensão do fato – as ossadas – só viria depois. 

Perus é um bairro com tradição de organização e militância. Muitos, como Maria Helena, iniciaram essa atividade na Igreja, de onde se formaram as Comunidades Eclesiais de Base. Muitos operários da fábrica de cimento também tinham essa ligação. E a escola era um centro receptor dessas histórias, motivando inclusive um trabalho de mestrado de Maria Helena, hoje professora aposentada da rede municipal e docente universitária em Caieiras. Ela recorda de um projeto ainda na época da prefeita Luiza Erundina (1989-1992) voltado para o estudo das questões próximas dos alunos. O secretário da Educação era Paulo Freire.

Essa preocupação com a memória se preservou, assim como a organização social. Em Perus se formaram, desde os anos 1980, centros de cultura organizados por jovens da região. O bairro também se mobilizou contra a ampliação do terreno sanitário. “A população não deixou, fechou o bairro”, lembra a professora, citando outros movimentos, como o da reativação da ferrovia Perus-Pirapora e pela criação de um centro de memória do trabalhador. “A escola está de muitas maneiras ligada a essas questões locais”, observa Maria Helena. Líder sindical na greve da Cimento Perus, João Breno ia falar com os estudantes, assim como Antônio Eustáquio, o Toninho, ex-administrador do cemitério, às vezes é chamado. “Seu” Toninho, como é conhecido, estava na atividade do sábado.

José Queiroz, ou José Soró, conheceu o laboratório no sábado, mas conhece bem a história. “A gente sabe as ossadas desde antes de 1990,  porque os boatos rodam há muito tempo”, diz o mato-grossense, em Perus desde os 12 anos e desde 2007 na Comunidade Cultural Quilombaque, formada em 2005, com um “compromisso inequívoco em torno dessa questão da juventude”. Ele lembra de todo o histórico envolvendo a questão do cemitério, incluindo o mau estado das ossadas. “Agora as condições são adequadas.”

Desafios

A mobilização do bairro já permitiu algumas melhorias nas condições de vida, mas os desafios prosseguem. “Todo esse trabalho cultural que a Comunidade desenvolve tem uma preocupação de reduzir o grau de violência, ou outras políticas públicas ficam muito prejudicadas. Esse enfrentamento traz uma lógica de denunciar o grau de vulnerabilidade em que a juventude se encontra, mas provendo mecanismos concretos. Ao mesmo tempo, é uma organização de capacitação, de formação”, afirma Soró.

A inclusão social pela arte e pela cultura embute outras questões a superar, como a dos recursos. Soró observa que o orçamento municipal destina 70% do orçamento para a região central e 30% para as “bordas periféricas” da cidade. Um orçamento para a cultura, lembra, que não chegava a 1% do total do município, e agora foi cortado quase pela metade pela atual administração. “Obviamente que os projetos para a periferia foram todos cortados”, diz o educador.

Ele destaca a organização de diversos coletivos que levou ao Programa de Fomento à Cultura da Periferia de São Paulo (Lei 16.496), no ano passado. E a própria iniciativa das comunidades para viabilizar ações. “Temos um acúmulo de experiência de fazer sem condições”, afirma. É preciso ter “capacidade de se juntar e muita criatividade”, o que leva a um certo grau de autonomia. “Isso é fundamental para você propor novas formas de relacionamento.”

Violência do Estado

Representante da Unifesp no comitê gestor do GTP, o pesquisador Javier Amadeo destaca a importância do encontro entre moradores e técnicos no sentido de conseguir apoios e mostrar a importância do projeto não apenas para familiares de vítimas, mas para toda a sociedade brasileira, em um processo de “reapropriação” da história. E apontando, inclusive, elementos de violência institucional presentes até hoje. 

Também em março, quando o GTP fez um balanço de suas atividades, um outro projeto ligado ao Caaf, teve divulgados alguns resultados preliminares que tratam de mortes em maio de 2006 em São Paulo como consequência da ação do Estado. O estudo tem como foco a análise de 71 casos de pessoas assassinadas por armas na Baixada Santista. Na visão dos pesquisadores, são casos que se relacionam como efeito do autoritarismo, que mesmo passada a ditadura se manteve na política de segurança pública. O projeto vem de parceria com o Centro Latino-americano/Escola de Assuntos Interdisciplinares da Universidade de Oxford.

Em relação ao trabalho sobre as ossadas de Perus, as mudanças políticas no Brasil preocupam os envolvidos com o projeto, particularmente quanto aos recursos necessários para a continuidade do trabalho. Representantes do GTP apontam falta de repasse por parte do Ministério da Educação. Quando participou de audiência pública, no final do ano passado, a secretária nacional de Direitos Humanos, Flávia Piovesan, disse que estava empenhada para resolver o problema.

Também há alguma dificuldade no caso da prefeitura paulistana. A gestão anterior, de Fernando Haddad (PT), aprovou um orçamento duas vezes maior para o GTP neste ano, mas a atual administração, de João Doria (PSDB), promoveu corte generalizado de despesas. As atividades não sofreram interrupção – existe até um processo de seleção em curso –, mas as incertezas quanto aos recursos têm provocado insegurança. 

No próximo passo para a tentativa de identificação, algumas amostras de DNA deverão ser remetidas em breve para um laboratório especializado no exterior. “O contrato ainda está sendo finalizado”, diz Javier. Para ele, o trabalho encontra-se em uma encruzilhada. A conclusão – que não implica em identificação, observa – pode ser um passo muito importante na busca pela verdade histórica e pela recuperação da memória, ainda mais em um país como o Brasil, que enfrenta resistências nesse aspecto. Seria “um avanço para que esse processo possa se replicar”, observa. Mas uma eventual interrupção pode representar um enorme efeito negativo, um retrocesso. “A gente nunca avançou tanto”, lembra o pesquisador. “Estamos fazendo de tudo para que esse trabalho se conclua.”

Toda a construção que levou ao GTP e ao Caaf foi “muito cuidadosa”, recorda Rogério Sottili. “Esse processo está sendo uma escola de antropologia forense, que vai ficar para o futuro. Não pode acabar.” Várias organizações têm se mobilizado para manter o projeto de Perus, como a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos, cuja presidenta, Eugênia Gonzaga, vem se empenhando para garantir recursos.

“Para que esse processo não seja interrompido, a sociedade civil tem um papel fundamental de cobrança”, diz Carla Borges à TVT, que acompanhou a visita dos moradores ao laboratório. “Os familiares já vem fazendo isso há muito tempo, nunca desistiram. Mas essa é uma responsabilidade de todos nós”, afirma a ex-coordenadora de Direito à Memória e à Verdade da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo. Ela foi a principal articuladora do encontro.

Assista à reportagem da TVT:

A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República informou que as atividades relacionadas ao GTP “permanecem sendo realizadas”, com a análise de aproximadamente 65% das caixas. “A SDH está realizando a seleção para a contratação de mais 5 consultores que desenvolverão suas atividades nos próximos 12 meses e há expectativa de formalização do instrumento de contratação do laboratório internacional que realizará os exames genéticos das amostras ósseas”, diz o órgão. Sobre o repasse financeiro, a secretaria diz que “ainda estão sendo realizadas as gestões internas necessárias visando a garantia dos recursos necessários ao projeto para o ano de 2018”.

Procurada mais de uma vez, a assessoria do Ministério da Educação não respondeu.

Ainda na administração anterior, do prefeito Fernando Haddad (PT), a Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo havia aprovado orçamento de R$ 880 mil ao GTP neste ano, dobrando o valor em relação a 2016. A atual administração, de João Doria (PSDB) congelou 74,75% desse total (R$ 675.800), de acordo com a assessoria da secretaria, que não informou se o restante já foi liberado e, em caso negativo, se há alguma previsão para que isso aconteça. 

 

Leia também: