Reportagem de capa

O corpo educa. A arte integra

O coreógrafo Ivaldo Bertazzo trabalha corpos e mentes de adolescentes da periferia, e eles retribuem. Levam dança, arte, educação e cidadania de volta para sua comunidade

Paulo Pepe/RBA
Paulo Pepe/RBA
No palco do Teatro Tuca, em São Paulo, o Cidadança em ação: Tudo o que Gira Parece a Felicidade

Silêncio total na coxia. Nem parece que atrás do palco há uma centena de moças e rapazes ansiosos para apresentar o resultado de meses de trabalho, ensaios e aprendizados. Enfim, as cortinas se abrem para as expressões extasiadas em seus corpos agora lapidados pela técnica da dança contemporânea. Eles fazem parte do Cidadança, projeto do coreógrafo Ivaldo Bertazzo para desenvolver a expressividade de adolescentes pelos caminhos da arte-educação.

O espetáculo Tudo o Que Gira Parece a Felicidade começou a ser desenhado em agosto de 2006, parceria entre a Escola de Reeducação do Movimento Ivaldo Bertazzo, a Secretaria Especial para Participação e Parceria de São Paulo e a Associação de Apoio ao Programa Capacitação Solidária. Os jovens foram selecionados por intermédio de organizações não-governamentais – em que atuavam como voluntários ou eram atendidos por algum programa dirigido a adolescentes moradores da periferia. De 500 indicações e inscrições, 100 foram escolhidos para integrar o projeto, culminado com apresentações no Teatro da Pontifícia Universidade Católica (Tuca), em maio. Durante esses meses, receberam bolsa de estudos, aulas de fisioterapia, linguagem, reeducação do movimento, além de assistência médica, dentária e psicológica. A precondição: ir bem na escola e manter o trabalho comunitário.

Laís Pereira Flávio, de 18 anos, foi uma das escolhidas. Na ONG Pequeno Príncipe, em Parelheiros, zona sul de São Paulo, ajudava voluntariamente na horta e no reforço escolar, e passou a ensinar ciranda para crianças de 7 a 12 anos e dança contemporânea para adolescentes de 14 a 17. “É uma conquista aprender com o Ivaldo. E me ajudou a ter mais certeza de que quero fazer faculdade de Fisioterapia. Quero mostrar o que aprendi para pessoas que não tiveram possibilidade e mostrar que também na periferia tem muita cultura”, afirma a dançarina, ainda com o figurino do espetáculo.

Como Laís e os outros 99 integrantes do Cidadança, seus professores vieram igualmente de bairros distantes. Em maio de 2003 uma seleção trouxe 41 jovens de 14 a 29 anos para fazer 32 horas semanais de curso de reeducação do movimento e coordenação motora, complementados com aulas de canto, percussão, ritmo, lingüística, saúde e história da dança. Eles faziam parte do projeto Dança Comunidade/Sesc. Nove desses jovens, hoje bailarinos profissionais da companhia de Ivaldo Bertazzo, deram aula para a turma do Cidadança.

Teatro Tuca

Onde tudo começou

Em 1999 Bertazzo foi estudar o corpo brasileiro em favelas do Complexo da Maré, na zona norte do Rio de Janeiro. Ele diz que o corpo da periferia tem uma expressão completamente distinta e era necessário saber que exercícios esse corpo precisa para que a pessoa se desenvolva também intelectualmente. “Esse corpo diferente só é possível quando você o coloca no mesmo patamar que o dos bailarinos. A estranheza de trazer o entendimento de outras culturas no seu corpo por meio da experiência musical e expressiva é uma pororoca, e é isso que fortalece sua expressão. Só aí seu hip-hop poderá trazer alguma riqueza para sua comunidade”, garante.

O coreógrafo afirma que não faz esse trabalho para evitar que jovens entrem no universo da violência e das drogas, mas sim para somar com o ensino público, ou seja, com aquilo que a escola não tem tempo nem ferramenta para fazer: “Na verdade, arte-educação é trabalhar de mãos dadas com o sistema de educação e saúde. Eu não estou ensinando a dançar. Isso é ilusão. O trabalho com arte-educação é um atalho para o aprendizado, e se não fosse isso estaríamos usando mal o dinheiro do projeto e viciando esses jovens em assistencialismo”.

Uma das mudanças perceptíveis nos dançarinos é a linguagem verbal. Bertazzo diz que, por mais que sejam ótimos com a dança, eles se sentem deficientes quando abrem a boca e não conseguem se comunicar. Por isso mantém um professor de linguagem na grade do projeto. Grade extensa, que mudou a rotina dos adolescentes. Laís tinha de acordar às 4h30 da manhã para se locomover de Parelheiros até o bairro São Judas e chegar com ânimo para um dia e tanto.

Com Lucas Ribeiro Saraiva, 18 anos, aconteceu o mesmo. Com o tempo preenchido pelas aulas do projeto na parte da manhã, o trabalho na ONG Arrastão à tarde e os estudos do último ano do ensino médio à noite, não tinha tempo de pensar “besteira”. Quando descobriu em seu bairro a ONG em que trabalha Rubão, coreógrafo e instrutor de percussão com instrumentos reciclados, foi indicado para um teste no Cidadança. “Descobri um universo diferente, terminei o colegial e não sabia o que fazer da vida. Hoje sei que quero fazer Fisioterapia. É meu sonho e era o da minha mãe, que não teve essa chance”, emociona-se o pupilo.

Rubens Oliveira Martins, de 21 anos, conquistou o respeito de seus iguais, o que Bertazzo considera importantíssimo no desenvolvimento do que chama de “pequenos jovens professores”, os profissionais formados pelo projeto Dança Comunidade. Rubão mora no Campo Limpo, na zona sul de São Paulo, e percorreu os mesmos trajetos que Lucas quando começou. Filho e irmão de músicos, fez piano, violão e canto, mas aos 14 anos conheceu a street dance (dança de rua). “Era um hobby. Daí comecei a dar aula no Arrastão. Em 2002 fui ver o espetáculo do Ivaldo e dos meninos da Maré e no ano seguinte soube do teste para o projeto. Não é fácil, uma pessoa oferece algo e ajuda a lutar por coisas que você não conhece e você conseguir se encontrar”, diz. Rubão já viajou com a companhia para diversos estados e também para França e Holanda.

Em 2006, com dois espetáculos no currículo, Samwaad e Milágrimas, Ivaldo Bertazzo decidiu profissionalizar os dançarinos do Dança Comunidade. Rubão retribui. “Meu tempo é escasso, mas não me afastei da ONG, vou reproduzir o que aprendi aqui para minha comunidade. Os meninos do Arrastão que eu trouxe para o Cidadança me ajudarão”, garante, para felicidade de Lucas.

Karla Fernanda Bacellar, 23 anos, bailarina profissional, começou em 2003 com uma bolsa de 200 reais e hoje é parte do corpo da companhia de Ivaldo Bertazzo, salário de 700 reais. E corre para dar conta da agenda lotada. Era professora de dança contemporânea na Fundação Gol de Letra, que a indicou para fazer o teste para o Dança Comunidade. Manteve as aulas do projeto, as do ensino médio e as que dava para crianças da fundação. Em 2004 conseguiu bolsa numa faculdade de Psicologia. E continua no projeto, e mantém o voluntariado, e não desiste do sonho: aprender o método de Bertazzo e levá-lo de volta para a Gol de Letra. “A dança tem tudo a ver com a psicologia, nela você também explora seus sentimentos, conhece seus limites e se mostra para o outro.”

Ao ver o sonho do Cidadança chegando ao fim, Silvana Cabral dos Santos, 18 anos, espera conseguir alcançar o êxito de Karla: ter um lugar na companhia e na universidade. Sil fazia o curso de agente jovem na ONG Ação Cidadania, em Cidade Tiradentes, zona leste, quando participou da seleção. Caiu no choro ao saber que tinha sido selecionada. “Meu sonho sempre foi entrar na companhia. Meu pai é ex-detento, está desempregado e minha mãe é professora em uma creche. Se fosse para pagar, nunca entraria nessa escola.”

tuca

Nada é impossível

Silvana pensa em fazer Fisioterapia, ensinar reeducação do movimento em ONGs e para alunos com deficiência. As aulas do projeto mudaram seu modo de agir. Depois de conhecer museus de São Paulo, passou a levar a família para também “se alimentar” de arte. “Eu não tinha acesso a museus, como o da Faap e o da Língua Portuguesa, e passei a freqüentar esse universo. Quem sabe não realizo meu sonho de entrar na companhia? Já vi que nada é impossível.”

Ivaldo Bertazzo também acha que não. Quer fazer novas coreografias para outros jovens, continuar o trabalho, manter aberto o caminho da companhia para novos bailarinos. “Sempre farei testes com esses jovens da periferia porque lá se dança muito mais que na classe média. Quem está na periferia faz menos aulas de inglês, recuperação de matemática, tem menos condição de lazer, não tem oportunidade de ir ao cibercafé. Do lado de cá, peca-se por excesso disso tudo”, afirma o coreógrafo.

Candidata a um futuro lugar ao lado de Rubens e Karla, Tamires Souza dos Santos, de 17 anos, já prefere ser chamada pelo nome artístico: Tamires Ballerini. Começou a dançar aos 5 anos em um projeto social na comunidade de Eldorado, em Diadema. Mais tarde, ensinou crianças de 7 a 12 anos na ONG Casulo e conquistou respeito e reconhecimento da comunidade.

O fim do projeto Cidadança é apenas o começo de uma nova trajetória: “As crianças da minha comunidade precisam ter acesso ao que aprendi”. Caçula de cinco irmãs dançarinas, cresceu envolvida com a arte e aprende a superar os naturais conflitos da adolescência. “Hoje sou mais tolerante com quem é diferente de mim.” Sonha entrar na Cia. Ivaldo Bertazzo ou no grupo Corpo. “No Corpo exigem clássico, mas discordo que seja essencial. Essencial é a técnica, e isso vou desenvolver cada vez mais”, promete a dançarina, que também quer fazer faculdades de Dança, Jornalismo e Serviço Social.

Com o final do Cidadança, os 100 alunos devem apresentar um projeto para aplicar o que aprenderam nas comunidades de origem. “Agora os meninos precisam correr atrás. Têm de vir outros. Se tivéssemos mais trabalhos como esse poderíamos até ficar mais tempo com eles, mas em um ano já deu para perceberem razoavelmente o que é trabalhar em equipe, respeitar o parceiro ao lado e se colocar em um grupo via palavra, texto e gesto”, afirma Bertazzo.