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Distância do crime

Experiências com medidas socioeducativas já previstas em lei mostram que educar e pôr o jovem para repensar seus atos não são sinônimo de impunidade e fazem cair a reincidência. Condená-lo ao sistema prisional adulto pode equivaler a condenar ao crime perpétuo

Gerardo Lazzari

Geraldo tem aulas de cavaquinho no Instituto Daniel Comboni. O educador Sidnei, abaixo, incentiva os menores a refletirem sobre as infrações que cometeram

O assunto da redução da maioridade penal de 18 para 16 anos de idade oscila na opinião pública ao sabor dos acontecimentos. O fato de a população jovem e pobre do Brasil estar entre as mais atingidas pela violência no mundo não costuma mobilizar a mídia. E o fato de no Brasil o número de mortes violentas de jovens de 15 a 24 anos ser maior que em países em guerra tampouco suscita grandes campanhas por soluções. Mas, se o gesto violento envolvendo menor atinge famílias de classe média ou da alta sociedade, toma ares de comoção social. E vem à tona a idéia de que jogar o menor na cadeia é fazer justiça.

Nunca houve uma onda noticiosa engajada no debate em torno do efetivo cumprimento da lei. E a lei determina que adolescentes infratores recebam tratamento especializado, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), e medidas socioeducativas. Isso envolve o funcionamento das Varas Especializadas da Infância e Juventude, das unidades de internação e de semiliberdade e de programas de liberdade assistida e de prestação de serviços comunitários. Também prevê advertências e reparação de danos. Ou seja, adolescente que falha não pode ser preso como adulto, mas isso não quer dizer impunidade nem que não tenha de ser submetido a medidas reparadoras.

Parte dos políticos aproveita a total falta de debate sobre o assunto para saciar a sede da sociedade por justiça – ou vingança. Afinal, como demonstrou pesquisa feita no mês passado pelo Instituto Vox Populi para a revista CartaCapital, 83% dos entrevistados apóiam a redução da maioridade penal. Mas se o universo penitenciário brasileiro é tido até pelos mais leigos como uma universidade do crime, incapaz de recuperar adultos que se envolveram em alguma ação criminosa, por que alguém pode crer que aprisionar adolescentes nesse ambiente pode “endireitá-los”?

Para se ter idéia, segundo o Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente, apenas um em cada dez delitos cometidos no Brasil tem alguma participação de menor de 18 anos. E, além das especificações do ECA, o atendimento a esse adolescente deveria ser complementado pelo Sistema Nacional do Atendimento Socioeducativo (Sinase), criado em junho de 2006. O Sinase estabelece parâmetros de atendimento, com ênfase nas ações de educação, saúde e profissionalização, indica como devem ser as equipes interdisciplinares e a estrutura de unidades de internação. O Projeto de Lei de Execução de Medidas Socioeducativas, encaminhado pelo governo federal e esperando a fila andar no Congresso, regulamenta as funções do Sinase. O objetivo principal expresso em todo esse aparato legal é educar e recuperar o adolescente.

“Há um uso excessivo da medida de internação”, denuncia Flávio Frasseto, do Núcleo da Infância e Juventude da Defensoria Pública de São Paulo.

Frasseto explica que a lei determina internação apenas em casos de grave ameaça à pessoa, é recurso extremado. Antes, deve-se recorrer a medidas como liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade. “Tráfico de drogas, por exemplo, não é grave ameaça à pessoa. Mas há juízes que aplicam a internação, dizendo que vai ser ‘bom’ para o adolescente. Isso é mudar a lei”, denuncia. Segundo a Secretaria Especial de Direitos Humanos, no final de 2006 havia 680 adolescentes encarcerados irregularmente no país.

Nas instituições responsáveis pelos casos de internação, o ideal educativo passa longe. Em geral, elas são conhecidas como escolas do crime. “O ambiente estimula a revolta, é repressivo, autoritário. Eles não podem olhar diretamente para certos monitores porque ele (o profissional) pode se sentir desafiado”, diz Helder Delena, assistente técnico da área de Proteção Especial da Fundação Abrinq.

O depoimento de Geraldo (nome fictício), de 16 anos, confirma essa situação. Ele esteve internado durante um mês em uma unidade da Fundação Casa (antiga Febem), depois de ter se envolvido num roubo de carro. “Se você está distraído e não pede ‘licença, senhor’ para passar na frente de um funcionário, apanha. Tem que pedir e esperar ele deixar. Se ele ignorar, você fica lá esperando.” Os relatos revelam uma estrutura hostil à ressocialização. “Um dia, vendo TV, um cara começou a rir. Olhou rindo para um funcionário e apanhou tanto, que ficou quase uma semana de cama”, descreve Geraldo. As “regras” vão além. Ao sair de um jogo de futebol, por exemplo, o adolescente não pode bater o chinelo no chão, fazendo barulho. “Uma vez levei um tapa que quase caí da escada”, relembra.

Para Maria Izabel da Silva, representante da CUT no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), existe uma tradição repressiva, e não um atendimento de natureza pedagógica, conforme a diretriz do ECA. “É necessário que tenhamos uma total mudança na concepção do atendimento”, sustenta.

Mudanças de legislação entram na ordem do dia sem que as leis atuais tenham sido aplicadas. O ECA é frontalmente desrespeitado e costuma ser lembrado de forma descontextualizada, sendo erroneamente associado a impunidade. O Estatuto determina, por exemplo, que os internos fiquem o mais próximo possível de casa. “Temos mães da Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo, cujos filhos estão nas unidades Raposo e Vila Leopoldina, na zona oeste”, conta Conceição Paganele, da Associação de Mães e Amigos da Criança e do Adolescente em Risco. “Se truculência adiantasse, todos sairiam da Febem recuperados”, diz.

Padre agnaldo soares limalima
Aplicando o Eca – o Núcleo de Atendimento Integrado (NAI), parceria entre a prefeitura de São Carlos (SP) e a Ordem dos Salesianos, com participação do estado, é uma das experiências mais bem-sucedidas no atendimento do menor infrator. Respeito, garantia de direitos, educação e trabalho dão ao NAI uma taxa de reincidência de apenas 4% contra 30% da média do estado de São Paulo

Educação X condenação

No sistema prisional adulto, dominado por facções e falta de perspectiva, garotos de 16 anos estariam ainda mais distantes do que mais pode ter-lhes faltado na vida: escola. De acordo com o Ministério da Justiça, apenas 18% da população carcerária estuda. No estado de São Paulo, que concentra quase metade dos presos de todo o país, os índices são piores. Reportagem publicada na edição de maio da Revista Pedagógica Pátio informa que o estado mantém 380 salas de aulas em suas 144 unidades prisionais e, dos 135.454 presos, apenas 11.838 estudam.

O texto observa ainda, com dados de 2005, que 68% dos presos paulistas não completaram o ensino fundamental, indispensável para praticamente qualquer vaga de emprego. “Se você faz o trabalho socioeducativo, muda o foco, mostra outro mundo para o adolescente, o mundo dos direitos, que o afasta do crime. O caminho hoje, o da violação dos direitos, leva a essa situação crítica”, analisa Helder Delena, da Fundação Abrinq.

Ricardo (nome fictício), 16 anos, foi preso mais de uma vez – inclusive junto com Geraldo. Ficou três meses uma vez, duas semanas em outra, numa delegacia em Santo André. Ele conta como era a “porta de entrada” da antiga Febem, a Unidade de Atendimento Inicial (UAI). Em tese, o infrator deve ficar ali no máximo por 72 horas até ser apresentado ao juiz. Ricardo diz conhecer quem tenha ficado até três meses no local. “Na UAI, você dorme em valete, dois por colchão, um para cima e outro para baixo. Para tomar banho, tinha três toalhas para uns 20 menores”, conta.

Ricardo e Geraldo hoje cumprem medida de liberdade assistida no Núcleo de Proteção Especial do Instituto Daniel Comboni, no Parque Santa Madalena, zona leste de São Paulo. E sentem a diferença. “Aqui é tudo de bom. Aprendi a tocar cavaquinho e outras coisas. Se acontece alguma coisa, o cara já sabe, é como uma família unida”, relata Geraldo. A entidade existe desde 2004, fruto de um projeto desenvolvido pela então administração municipal. Tem capacidade para atender 100 adolescentes.

A coordenadora Sueli Aparecida Santiago dos Santos explica que a proposta pedagógica busca fazer o adolescente repensar seu ato. “Sempre há essa aproximação com o adolescente, mas é uma proposta pedagógica. Não somos apenas amigos”, pontua. “Tratamos da responsabilização, de fazê-lo pensar o que o ato causa para ele e para a comunidade.” Ela explica que esse contato com os garotos transforma os educadores em referências. “Eles param de falar só de crime. Em outras situações, o assunto com os amigos, os vizinhos é só ‘fulano morreu’, ‘sicrano foi preso’. A maioria desses meninos nunca entrou num cinema”, conta Sueli.

Famílias da região também são atendidas no Núcleo. Uma mãe, que não se identificou, tem um filho internado na Fundação Casa e encontrou apoio no trabalho do Núcleo. “Quando você tem apoio, o tratamento muda.” Ela viu o filho se envolver com drogas e ser apanhado num assalto. “Pior, ele continua usando lá dentro. O estado chama a responsabilidade e não cuida do menino. Se tirou de mim, tem de cuidar melhor que eu.”

Edna Aparecida Manu, moradora de São Carlos (SP), passou por situação semelhante. Seu filho acabou condenado a cumprir medida socioeducativa. Mas o momento em que a polícia foi buscá-lo em casa já demonstrou a truculência do sistema: “Foi tanta polícia, mais de dez homens para buscar um menino. Precisa tudo isso?” A sorte de Edna e de seu filho é que em São Carlos existe o Núcleo de Atendimento Integrado (NAI), parceria entre a prefeitura e a Ordem dos Salesianos, com participação do estado.

“O que fazemos é simplesmente aplicar o ECA”, resume o padre salesiano Agnaldo Soares de Lima, um dos criadores do NAI. “Durante a implantação, a então Febem bancou o aluguel do espaço e os custos. Com o tempo, percebemos que não era um projeto da Febem, mas da cidade com vários parceiros, entre eles a Febem”, conta. Segundo ele, a Fundação Casa não estimula iniciativas semelhantes. A custódia, parte indispensável do NAI, por prerrogativa constitucional só pode ser exercida pelo governo do estado. O padre conta que mais de 30 pequenos e médios municípios já tentaram reproduzir o projeto, mas que a fundação bloqueia as iniciativas com a questão da custódia. “Sem ela, não é possível reproduzir a experiência”, relata. Apenas Ribeirão Preto e Americana conseguiram.

Os resultados mostram o que pode fazer o simples cumprimento da lei: o número de crimes violentos cometidos por adolescentes caiu de 15 em 2000 para nenhum em 2006. Enquanto 30% dos jovens que passam pelo sistema de internação estadual voltam a cometer infrações, no NAI a reincidência é de 4%. “O Núcleo foi perseguido no começo, falavam que o padre e o prefeito protegiam moleque bandido. Hoje, é motivo de orgulho para toda a sociedade”, conta o prefeito Newton Lima Neto (PT).

O NAI reúne toda a rede de instituições e profissionais pelos quais o adolescente deve passar. Ele é atendido por uma assistente social que faz contatos com sua família. Promotor de Justiça e juiz têm espaço para realizar audiências ali mesmo. Os adolescentes recebem ainda atendimento psicológico. O jovem pode ficar em custódia no Núcleo ou ser liberado para responder ao processo em liberdade. A custódia é o único ponto em que a participação da Fundação Casa é indispensável.

A liberdade assistida e a prestação de serviços à comunidade não diferem muito em São Carlos da experiência do Núcleo Daniel Comboni, na capital. A diferença está na semiliberdade, medida intermediária entre o regime aberto e a internação – os adolescentes ficam na unidade durante a semana e em casa no sábado e domingo. Edna, que teve seu filho encaminhado para a semi, aprova o trabalho. “Deram um voto de confiança para ele e eu também dei. Se ele fosse para a Febem, ia sair pior do que entrou.”

Colaborou Glauco Faria

Medida ineficaz
No dia 26 de abril a Comissão de Constituição e Justiça do Senado aprovou Proposta de Emenda Constitucional do senador Demóstenes Torres (DEM-GO) que reduz de 18 para 16 anos a maioridade penal no país para jovens que venham a cometer crimes hediondos. A PEC ainda tem de ser votada em dois turnos no Senado antes de seguir para a Câmara.
Em artigo publicado no site do Movimento Nacional dos Direitos Humanos (www.mndh.gov.br), seu coordenador, o advogado Ariel de Castro Alves, observa que países como Espanha e Alemanha, que reduziram a maioridade penal, verificaram aumento da criminalidade entre os adolescentes e acabaram voltando atrás e estabelecendo tratamento com medidas socioeducativas até 21 anos.