Música

Museu de grandes novidades

O rock brasileiro já tem mais de meio século de história e muitos ingredientes para compor o primeiro arquivo do gênero no Museu da Imagem e do Som. E o público já dá seus pitacos

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Cazuza começou em 1982 como vocalista do Barão Vermelho. Em 1985 seguiu carreira solo e fez seis discos até 1990, ano em que morreu

O rock nacional está prestes a virar museu. E organizado por um fã assumido de Adoniran Barbosa. “Quando perguntaram a Adoniran sobre samba paulista, ele respondeu: ‘Todo samba é igual, o meu só é diferente nos versos’. Pode haver diferenças de nuances de melodia, sotaque ou interpretação, mas a letra é por onde começam a aparecer essas diferenças: samba da Bahia fala de Bonfim ou vatapá, samba do Rio fala de Copacabana ou do Mangue, samba paulista fala da Praça Clóvis ou de Jaçanã”, observa o jornalista e pesquisador Ayrton Mugnaini Jr., curador do Arquivo do Rock Brasileiro. Ele lembra que os sotaques valem para qualquer gênero. “Do mesmo modo, a valsa, o fox e o rock, ritmos estrangeiros, começam a se abrasileirar quando passam a falar de Brasil ou pelo menos em português do Brasil e de um jeito brasileiro.”

O Arquivo do Rock é uma idéia de velhos roqueiros com ouvidos abertos a outros sons. A Associação Cultural Dynamite, comandada por André Luiz “Pomba” Cagni, produtor e músico, conseguiu patrocínio da Petrobras e apoio do Instituto Moreira Salles, para restauração de áudios, e do Museu da Imagem e do Som (MIS), para abrigar o futuro acervo. Eles esperam ter boa parte pronta até julho. E já estão recebendo doações e palpites dos fãs do gênero.

A analista de crédito Kelly Sena Lira, 19 anos, também estudante de Psicologia, não vê a hora de conferir álbuns, LPs e quinquilharias. “Como peças usadas por cantores e bandas, instrumentos, rascunhos de composições”, explica a admiradora de Renato Russo. “O museu tem de ter tudo sobre ele, que é o maior dos maiores do rock brasileiro. Também gosto muito do Raul (Seixas), mas o Renato está acima de qualquer coisa”, diz Kelly, para quem falta “crítica social no nosso rock”.

O vendedor Leilson Pinheiro Varela, 20 anos, curte mais black music, mas também ouve seus rocks, com preferência para CPM 22 e Charlie Brown Jr. “O museu seria um point a mais pra galera. Gostaria que tivesse coisas relacionadas ao punk”, palpita. “Show de bola”, afirma o vendedor e body piercer Artur Batista, de 25 anos. “O rock é uma cultura, um jeito de viver. E tem muita história pra contar, não só essas bandinhas de hoje em dia. Rock é inovação constante. Começou lá atrás, com o blues, e veio avançando.”

juan luiz guerra/divulgaçãoraul
O baiano Raul Seixas encontrou o sucesso misturando rock com baião, mas começou fazendo cover de Elvis Presley. Compôs para Jerry Adriani, Renato e Seus Blue Caps e Sérgio Sampaio. Foi parceiro do escritor Paulo Coelho

Rock-canção

Se o rock tem raízes no blues – o próprio nome da banda Rolling Stones vem de uma canção do bluesman Muddy Waters –, quem poderia supor que no Brasil os primeiros a cantar rock foram artistas identificados com o samba-canção? Em 1955, na esteira do sucesso de um filme, Nora Ney gravou Rock Around the Clock, de Bill Haley e Seus Cometas. A mesma Nora, ironicamente, gravaria Cansei de Rock, em 1961. E quem ajudou a trilhar os primeiros passos do rock verde-amarelo foi ninguém menos que Cauby Peixoto, com Rock’n’Roll em Copacabana, de Miguel Gustavo, que ganharia fama mesmo com Pra Frente, Brasil, o “hino” da seleção brasileira de 1970.

Artur Batista gostaria também de um museu de cera. “Com os melhores. Com o Cazuza, por exemplo, esse maluco revolucionou o rock. Cássia Eller também. Seria bacana ter peças de roupas de roqueiros. Tenho só 25 anos, não vi o Cazuza quando ele estava bombando. Acho que um museu é legal por isso”, diz ele. Cazuza morreu em 1990, quando Artur tinha 8 anos.

O estudante de cursinho João Vitor de Almeida, 25 anos, aumenta a lista de reivindicações: biografias, pôsteres, quadros. “Seria legal para mostrar as bandas que sumiram. Ouço bastante Mutantes, Secos&Molhados, Camisa de Vênus, Biquíni Cavadão, Garotos Podres, algumas coisas dos Ratos de Porão, a fase mais antiga do Capital Inicial, Legião Urbana e até Otto, que mistura rock com vários ritmos.”

Dono da Baratos&Afins – tradicional loja instalada na Galeria do Rock, no centro de São Paulo –, Luiz Calanca, 54 anos, apóia a idéia do Arquivo no MIS. Para ele, a exemplo de tantos outros setores, o rock padece de um mal tipicamente brasileiro, a falta de memória. “É quase impossível fazer um museu completo, porque o Brasil não tem memória e tivemos muita gente fazendo rock, e dos bons, sem ficar famosa. Não que isso vá ser uma falha, mas é preciso atualizar o museu sempre, ouvir sugestões das pessoas e pesquisar”, sugere Calanca, que começou a ouvir rock aos 12 anos. “Meu primeiro LP foi Meu Bem, do Ronnie Von, com uma versão de Girl, dos Beatles. Muito legal.” Dos 90 mil vinis de sua loja, Calanca calcula que um terço é rock.

E ele também faz a sua lista de objetos indispensáveis, como equipamentos e sets de gravação antigos, publicações, enciclopédias. “Revistas como Bizz, a Rolling Stone brasileira dos anos 70, A Música do Planeta Terra foram como bíblias para mim, porque antes existiam muitos bons críticos de música.” Calanca elegeu Dom Quixote, dos Mutantes, a música-símbolo do rock nacional (A vida é um moinho/ É um sonho o caminho/ É do Sancho, o Quixote/ Chupando chiclete…), ao lado de Panis et Circensis. “Também acho que Tom Zé é o nosso Frank Zappa, o papa da invenção. São Paulo merece abrir o museu do rock nacional. Tem tudo a ver”, completa, com um último pedido para o acervo: a primeira guitarra dos Mutantes. “Ela existe, mas será que o Sérgio (Dias) doaria?”, questiona.

Então, a reportagem encaminhou a pergunta ao dono da guitarra e um dos criadores da histórica banda, que voltou à ativa em 2006. “Depende da estrutura por trás do museu”, diz Sérgio Dias. “Se for uma coisa governamental, eu pensaria a respeito; particular, não.” Calanca pode ter esperanças. Sérgio também dá sugestões sobre o que não pode faltar, além de estrutura, apoio financeiro oficial, programação variada. “Não basta expor. Isso perde o sentido depois de pouco tempo. Tem de ser algo que mova as pessoas e interaja com a cena do rock nacional.” Algo meio mutante.

Era um garoto que amava o rock e o Adoniran
Ayrton Mugnaini Jr. é curador do Arquivo do Rock Brasileiro, que deve ficar pronto em julho

Quando o rock chegou ao Brasil era associado a mau comportamento, delinqüência. E hoje?
Parece que ainda é um pouco, apesar de muita gente já fazer rock com guitarras altas perfeitamente domesticado até em publicidade.

Quantos grupos você já viu nascer e morrer em curto espaço de tempo?
Quase a mesma quantidade de grãos de areia que já pisei na praia…

Você queria ter uma banda de rock quando garoto?
Queria e tive várias, muitas preservadas em fitas de rolo e cassete. Só em Sorocaba, onde morei de 1969 a 1979, foram The Paranoic Market Boys, o Trânsito Maluco de Marte, Repolho Nervoso…

Nos anos 60, muitos músicos ilustres se uniram contra a guitarra elétrica na música brasileira.
Foi uma xenofobia tão idiota que tendo a acreditar na tese de que foi armação da TV Record para promover seus contratados roqueiros e não-roqueiros.

É possível falar de rock genuinamente brasileiro?
Sim, desde que tenha algum elemento marcantemente brasileiro, nem que sejam as letras.

Você já falou que o Adoniran Barbosa desfruta de uma certa simpatia entre o povo do rock. Por quê?
Ele mesmo responde neste samba: “Eu gosto dos meninos desse tal de iê-iê-iê porque com eles canta a voz do povo”. Mas era uma coisa “nada contra, eles lá e eu aqui”. Tanto é que em outro samba, Rua dos Gusmões, ele despreza uma mulher que gosta muito de rock: “Trocar o samba pelo iê-iê-iê/não pode ser”.