Comportamento

Filho, para que sabê-lo?

Cresce no Brasil uma tendência já consolidada na Europa e nos Estados Unidos: a dos casais sem herdeiros

jailton garcia

Vanderlei e Ana: “Parece mais interessante e desafiador educar uma pessoa do que gerá-la”

O poeta Vinicius de Moraes eternizou a questão: “Filhos? Melhor não tê-los. Mas se não os temos como sabê-los?” A verdade é que cada vez mais as pessoas, em especial as mulheres, refletem a respeito da questão e têm resolvido “não sabê-los”. De acordo com os Indicadores Sociodemográficos divulgados pelo IBGE no final do ano, em três décadas a taxa média de fecundidade caiu de 5,8 filhos por família para 2,3. E declinou de 63% para 53% o percentual de casais com filhos no país nos últimos dez anos. O tradicional padrão das famílias brasileiras formadas por pai, mãe e filhos começa a minguar.

Hoje são várias as configurações: mães ou pais solteiros, casais com apenas um filho ou sem nenhum. A vontade de não gerar filhos faz parte de uma filosofia levada a sério e muito bem estudada. Envolve aspectos diversos: situação financeira, status profissional, desejo de manter a liberdade, de dedicar-se exclusivamente ao parceiro ou parceira e até motivos ideológicos.

O redator Vanderlei Campos é casado há 15 anos com Ana. Ela tem 42 anos. Ele, 41, fez vasectomia aos 25. “Foi uma questão que até gerou polêmica, pois tive de implorar ao meu médico que convencesse o cirurgião. Mas eu estava completamente determinado e consciente”, conta Vanderlei. Sua decisão foi política. “Acho que o mundo não corre o risco de extinção e prescinde do meu patrimônio genético. Se eu tiver algum dia um impulso incontrolável de ser pai, o que não falta no Brasil são crianças precisando de um. Outra questão: me parece mais interessante e desafiador educar uma pessoa do que gerá-la”, conta. O caso de Vanderlei é raro. A classe médica é refratária a decisões tão precoces de esterilização, sobretudo de quem nunca foi pai.

Na maioria dos casos, a opção por não ter filhos nada tem a ver com falta de carinho por crianças nem com falta de dinheiro. A redução da fecundidade tem muito mais a ver com a escolarização e a participação crescentes das mulheres no mercado de trabalho. “A opção dos casais por não ter filhos está muito ligada ao estilo de vida”, explica a professora Elisabete Dória Bilac, socióloga e pesquisadora do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Universidade de Campinas (Unicamp-SP), que estudou o tema. E não é novidade nem no Brasil, nem fora daqui.

Fenômeno mundial

Na Alemanha, 30% das mulheres com diploma universitário não têm filhos, segundo a revista norte-americana Newsweek. Nos Estados Unidos, de 1985 para 2005, o percentual de famílias sem filhos subiu de 9,5% para 15,7%. Na década de 90 foi criada no país a expressão DINK (double income, no kids) family – família com renda dupla, sem crianças. No Japão, 56% das mulheres com 30 anos ainda não tiveram filhos. Isso tem afetado inclusive alguns costumes.

Em várias nações européias, por exemplo, já há estabelecimentos com plaquetas em suas portas com dizeres como “só adultos são bem-vindos”. Estão surgindo por todos os lados – até mesmo no Brasil, no caso de alguns hotéis, pousadas e condomínios – empreendimentos concebidos exclusivamente para casais sem filhos. Até a indústria automobilística entrou na moda: há uma fábrica japonesa que, em vez de oferecer assentos para bebês, apresenta como opcional acomodações para cachorros. E na Inglaterra e no Canadá já existem instituições com nomes como Associação dos Livres de Filhos.

“Muitos casais, até mesmo os mais jovens, têm projetos de vida que não incluem a maternidade ou a paternidade. E essa escolha está normalmente ligada a profissionais de renda mais alta. Mesmo aqueles que se decidem apenas por um filho têm renda acima de cinco salários mínimos per capita. Estão unidos somente pelo laço amoroso, ambos são profissionais e estão indisponíveis para a dedicação parental”, analisa a professora Elisabete. Segundo outra pesquisa realizada pela Unicamp, a decisão final parte da mulher. “Claro que o homem participa da discussão, mas a pesquisa deixou claro que a posição deles nesse assunto não é decisiva. Teoricamente, eles participam e negociam, mas a decisão final é delas”, diz a pesquisadora, para quem o fenômeno é mais um fruto da emancipação feminina e vai, inclusive, contra todos os estereótipos.

“A mulher não age mais de acordo com velhos padrões e não se sente menos feminina por causa disso. Ela pode, sim, optar por ter ou não ter filhos. Em outras palavras, conquistou a autonomia também no campo reprodutivo”, explica. O IBGE verificou que nas casas comandadas financeiramente pelas mulheres houve, nos últimos dez anos, aumento de 3,5% dos casamentos sem filhos.

rodrigo queirozMaria Luiza e Alexandre
Maria Luiza e Alexandre: “Sem crianças na casa, a vida a dois é mais rica. Isso tem sido muito bom para a gente”

Contracultura

Mas ainda existem cobranças externas. “Minha família, de cultura católica, estranha muito minha decisão. Não entendo por quê: foi algo natural, sem nenhuma crise”, diz o jornalista Vanderlei. Acontece da mesma forma com o casal Maria Luiza e Alexandre Augusto Rivero, ambos de 43 anos, que engrossam comunidades brasileiras do Orkut que levam nomes como Casais sem Filhos por Opção ou Casal sem Filhos Ltda. Ele é artista plástico, ela é contadora e o casamento já completou 16 anos. Ambos concordam: a vontade de curtir intensamente o relacionamento entre os dois foi um dos fatores que afastaram a hipótese de filhos.

“Sem crianças na casa, a vida a dois é mais rica – isso tem sido muito bom para a gente. E sobram mais recursos para viajar, fazer programas melhores etc.”, afirma Maria Luiza. “É verdade que, até certo momento da vida, imaginei que teria um filho. Mas nunca foi um sonho ou uma visão romântica, do tipo ‘quero um moleque com quem vou jogar futebol’. Além disso, a vida é mais fácil para nós”, concorda Alexandre. “Temos total liberdade para passear, posso aceitar qualquer serviço e, mais importante, me dedicar totalmente à minha mulher, com quem tenho um casamento muito feliz”, conta ele. “Em certo momento, percebi que não queria abrir mão de meus estudos ou de horas de trabalho para cuidar de um filho”, resume Maria Luiza.

A secretária Sara de Almeida Barros, de 40 anos, e seu marido, o policial militar Wellinghton de Oliveira Barros, 36, também formam um par sem filhos, mas que adora crianças – assim como o juram os casais Maria Luiza e Alexandre e Vanderlei e Ana. “Dos 20 aos 25 anos, tive muita vontade de ter um filho. Depois me desliguei da idéia. Quando me casei com Wellinghton, há dez anos, já sabia que não teríamos um herdeiro. Mas isso nem de longe quer dizer que não goste de crianças. Tenho muito jeito com elas, sou aquela tia que conforta os sobrinhos e rola no chão para brincar com eles”, conta Sara. Já ele se designa como “reserva técnica da família”. “Parei de contar o número de sobrinhos quando cheguei no 15º. Troco fraldas, ajudo a alfabetizar, brinco e educo. Faço com o maior prazer, assim como minha mulher, que participa da farra. A convivência com eles é muito prazerosa para a gente”, descreve.

jailton garciaSara e Wellinghton
Sara, com Wellinghton: “Não serei uma mulher frustrada pelo fato de não ter tido um filho. Esse é um ponto importante”

Dos outros é refresco

A frase clássica “criança é uma delícia, principalmente quando está dormindo” é muito usada entre aqueles que não pretendem gerar prole. E está intimamente ligada ao fator “liberdade”, que estes casais citam repetidamente. Sara frisa muito esse aspecto. “Quando me casei, estava iniciando uma fase de muita independência, conquistada a duras penas. Isso provocou uma certa desconexão com minha família: eu gostava da minha autonomia e não queria perdê-la. Nem abrir mão dela para cuidar de um bebê”, lembra a secretária. “Acho que foi uma decisão certa para mim, sobre a qual refleti muito. E minha conclusão final foi: não serei uma mulher frustrada pelo fato de não ter tido um filho. Esse é um ponto importante.”

O apoio do marido foi fundamental. Wellinghton, assim como Alexandre, “bancou” a decisão da mulher. Embora todos citem a tal cobrança da sociedade e da família como um padrão, observa Sara, muitas amigas com filhos vêm a ela se queixar da “trabalheira” e chegam a invejar sua condição. “Vejo muitas mães que tiveram seus filhos para garantir que não ficarão sozinhas na velhice. Pura ilusão. Ter um filho não significa estar acompanhado para sempre. Além disso, estou certa de que ele não ajuda nem atrapalha as relações amorosas. No máximo, se torna um álibi para o que acontece.”

No entanto, é preciso deixar claro: não ter filhos não é uma tendência que se alastra abertamente. O padrão ainda é “pai, mãe e filhos”, com as mulheres se dividindo entre as tarefas domésticas, o cuidado com os filhos e a profissão. Assim como o modo de vida “dona-de-casa e mãe-período-integral” também resiste, e em muitos casos igualmente por opção. “Mas não há dúvida de que, com toda a onda de emancipação feminina, o padrão de reprodução está se diversificando. Ou seja, a mulher conquistou a liberdade de escolher entre gerar um núcleo familiar com filhos ou não. Não existe mais um modelo único”, resume a professora Elisabete. A diferença é que o modelo sem filhos, com a decisão predominantemente da mulher, tem se mostrado um modelo mais bem definido de compartilhamento.