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O desafio de disputar o poder

Enquanto o governo costura alianças para ganhar força no segundo mandato, movimentos populares buscam unidade para mudar da economia ao sistema político, disputar a agenda do país, fortalecer a democracia e avançar nas conquistas sociais

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Às vésperas do início do segundo mandato do governo Lula, o clima entre os movimentos sociais ainda é um misto de balanço e ressaca. Para esses movimentos, pratos como a ampliação da democracia, o fortalecimento dos canais de participação popular em contraponto ao sistema político fisiológico, a ruptura com o modelo econômico foram apreciados pela primeira gestão Lula com excessiva moderação. “Houve um pouco de ingenuidade em achar que o governo iria, espontaneamente, valorizar e contar com os movimentos sociais. Isso não aconteceu. Caíram as ilusões”, considera dom Demétrio Valentini, coordenador da Semana Social Brasileira da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e presidente da Cáritas Brasileira.

Embora reconheçam a importância dos programas sociais adotados, parcelas dos representantes dos movimentos consideram que o governo continuou privilegiando o mercado financeiro. “Em 2006 foram destinados ao programa Bolsa Família 8 bilhões de reais, enquanto 179 bilhões de reais foram para o pagamento de juros da dívida pública. Essa é a opção por um modelo estéril, que não gera empregos, que não gera riquezas”, afirma Maria Lúcia Fattorelli Carneiro, coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida e vice-presidente da Unafisco Sindical, entidade que reúne os auditores da Receita Federal.

O grande consenso entre os movimentos sociais é de que é preciso ousadia para romper com o conservadorismo do modelo econômico. “Nossa pauta ainda está sendo construída, mas a mudança da política econômica é, sem dúvida, a mais urgente. Queremos o fim da concentração de renda, de riqueza e de terra no país − o sistema que privilegia os lucros das empresas privadas, o superávit primário e os altos juros e só aumenta a desigualdade social”, declara a coordenadora nacional do Movimento dos Sem Terra (MST), Marina dos Santos.

As organizações criaram fóruns para formular propostas alternativas para apresentar ao país e ao governo e uma agenda de lutas comuns, tais como: auditoria da dívida pública interna e externa; anulação do leilão de privatização da Vale do Rio Doce; política de valorização do salário mínimo; reajuste da tabela do Imposto de Renda; redução do superávit primário; mudança na estrutura do Conselho Monetário Nacional (CMN).

O presidente nacional da Central Única dos Trabalhadores (CUT), Artur Henrique da Silva Santos, afirma que a entidade pretende ir além dos slogans e palavras de ordem por mudança da política econômica. Ele diz que existem propostas concretas, mas é preciso conquistar espaço para que tenham trânsito. E cita como exemplo a participação de representantes dos trabalhadores e dos empregadores no CMN. “Também reivindicamos a inclusão de duas metas no debate das reuniões do CMN: crescimento econômico e geração de empregos. Esses são alguns dos mecanismos para construir uma inserção da sociedade civil nas decisões sobre a política macroeconômica”, avalia o sindicalista.

Artur Henrique defende ainda o estabelecimento de “contrapartidas sociais” para todos os contratos de empréstimos, de bancos públicos ou privados, para empresas nacionais ou internacionais. Ao tomar o empréstimo, as empresas teriam de assumir compromissos de aumentar ou manter o quadro de funcionários, de exigir a formalização dos empregos em toda a sua cadeia produtiva e de democratizar as relações de trabalho. “Solicitamos audiência com o presidente Lula para discutir essas propostas. Também reivindicamos a valorização do salário mínimo e uma rediscussão sobre o Imposto de Renda”, lembra.

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Como fazer

O desafio não é novo. Os movimentos sabem que têm de disputar poder com os outros setores para garantir espaço para suas demandas. “É de uma urgência absolutamente indispensável que os movimentos sociais atuem com seriedade e de modo cada vez mais organizado. Porque é agora ou nunca mais”, avalia a socióloga e professora da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP) Maria Victória Benevides, que aposta na força dos movimentos, no mundo rural e urbano. “A história evidencia: somente com muita luta e reivindicação dos ‘de baixo’ foi que os ‘de cima’ foram se desapropriando de seus privilégios, de seus absurdos”, contextualiza. A socióloga cita Frei Betto, para quem o governo “é como feijão, só vai na pressão”.

Atuação mais ousada e ativa no segundo mandato é o que defendem também os representantes dos povos indígenas, reunidos em Brasília no final de novembro. “Vamos avaliar se continuaremos ocupando os espaços de participação criados pelo governo, pois os índios foram chamados para integrar conselhos, comissões e grupos de trabalho, mas na prática nada acontece”, afirma o assessor de comunicação da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, Paulino Montejo, para quem o governo Lula foi o que menos regularizou terras indígenas. O movimento prepara o Abril Indígena de 2007, em que pretende alertar que demandas como exploração mineral, construção de hidrelétricas e outras obras de infra-estrutura não podem desprezar os direitos das populações, as leis ambientais e as regras da sustentabilidade.

Para garantir uma atuação mais respeitada e robusta, as forças sociais precisam superar suas divergências e se articular melhor para construir alianças. Marina dos Santos, do MST, diz que os movimentos sociais demoraram para entender a natureza do atual governo, mas agora estão caminhando para a construção de uma unidade maior para disputar o poder – o que significa entender que o latifúndio, as empresas, o setor financeiro, a mídia também exercem pressão. Sem essa unidade, tão desafiadora para os movimentos quanto emplacar suas reivindicações, fica difícil construir um projeto para o país – já que não basta dizer “não”, é preciso propor alternativas ao que se nega.

Nesse sentido, há o reconhecimento das fragilidades da sociedade civil. Apesar de considerar o momento atual bastante significativo, Maria Aparecida de Aquino, professora de História Contemporânea da USP, não sente que os movimentos sociais estejam suficientemente ativados para tomar parte do processo. Ela afirma que, historicamente, em um período de explícita adversidade, como foi na ditadura, há maior arregimentação de forças.

“No entanto, desde a década de 90, pela necessidade de garantir a manutenção dos empregos, as mobilizações pelas questões mais sociais perderam espaço. Houve um refluxo muito grande e leva-se tempo para que aconteçam uma rearticulação dessas forças e a percepção para as novas necessidades”, analisa a historiadora, preocupada com o risco de o próximo governo passar como um trator com reformas como a da Previdência, “que podem ser fatais para todos nós”.

Outros obstáculos dos movimentos que estão dentro de seus próprios quintais são autonomia e capacidade de organização. No primeiro mandato de Lula, a expectativa de ver finalmente encaminhadas reformas (agrária, fiscal, urbana, de educação e saúde) prometidas durante décadas levou a sociedade organizada a um período de passividade, desmobilização e desarticulação.

Dom Demétrio Valentini ressalta que os movimentos sociais têm clareza da necessidade de se organizar: “É urgente que caminhemos para uma consistência maior da cidadania, que aglutinemos e nos articulemos melhor”. A abertura de um canal de diálogo com o governo é vista como algo a ser conquistado. O ministro Luiz Dulci, da Secretaria-Geral da Presidência da República, afirma que o presidente Lula deve receber os movimentos sociais até o final do ano para debater as demandas da sociedade civil no segundo mandato. Segundo ele, já está acordado que a primeira reunião será conjunta com as maiores organizações sociais, como as centrais sindicais, trabalhadores rurais, estudantes, ONGs, movimentos negro, de mulheres e dos índios. “Essas audiências deverão acontecer simultaneamente ao diálogo com os partidos políticos já iniciado pelo presidente Lula”, garante Dulci.

Horizontes e bandeiras
Na busca do fortalecimento da democracia, tornando-a mais direta e participativa, os movimentos sociais têm se organizado em espaços mais abrangentes e plurais. A Coordenação dos Movimentos Sociais (CMS), criada em abril de 2003, procura articular a mobilização em torno de uma pauta mais imediata. A Assembléia Popular (AP) vem de um processo mais longo, de 15 anos, e prioriza a organização na base com o objetivo de estreitar laços entre movimentos e construir uma estratégia comum a todos.

Uma das principais bandeiras da AP e da CMS é a reforma do sistema político, com ampliação dos mecanismos de democracia direta e participativa previstos na Constituição – como plebiscitos, referendos e outros canais de decisão popular – e mudanças no sistema eleitoral e partidário. A democratização dos meios de comunicação é considerada essencial para a quebra do monopólio do pensamento único neoliberal. Há pressões por mudanças nas formas de concessão de rádio e TV, na legislação que criminaliza os canais livres e comunitários, na distribuição de verbas publicitárias e por um novo sistema público de comunicação.