Frei Betto

O churrasco

Depois das caipirinhas vem aquele vazio no estômago. O anfitrião, aflito com tantos a conferir a churrasqueira e o andar da carruagem, serve as lingüiças, as asas e os corações. Sem alternativa, você come

Gerardo Lazzari

Steve está se profissionalizando e prepara kits de comida orgânica para vender

Nada mais atribulado que um churrasco. Você já levanta excitado, disposto a um café-da-manhã frugal, para deixar o apetite pronto a maminhas, picanhas, lingüiças, asas de frango e corações de galinha.

Na hora combinada, dirige apressado e despeja a família no local da comilança. Inicia-se então a saga carnívora: antes de indagar como vai você, o anfitrião gaba-se de que comprou as melhores carnes, possui a mais bem-feita churrasqueira e sabe grelhar como ninguém.

Você acredita, mas, ao aproximar-se da churrasqueira, percebe que o anfitrião ainda nem abriu o saco de carvão. As carnes estão ali do lado, revestidas de sal grosso, expostas às moscas.

Pouco depois, inicia-se o ritual. Após muito custo – álcool derramado, jornais amassados, fósforos brochados –, o carvão é aceso e a fumaceira envolve as carnes e entope o nariz dos comensais. O anfitrião decide assar primeiro lingüiças, corações e asas de frango, como se quisesse encher a barriga de todos com tais acepipes e guardar para si as carnes nobres.

Começa a dar aquele vazio no estômago, as crianças estão impacientes, já comeram vários sacos de batata frita, e nada de churrasco. O mais novo chora de fome agarrado às suas pernas e rejeita o pão com pasta de atum que você lhe oferece. Ele quer sustança, carne, que ainda não está pronta. Sua mulher, que não come carne vermelha, fuzila-o com aquele olhar de “cadê a salada, o peixe, os camarões que você disse que ele ofereceria?”

Você já bebeu umas tantas caipirinhas, entra na cerveja, começa a ficar impaciente. O anfitrião – aflito com tantos convidados a se aproximar da churrasqueira para conferir o andar da carruagem – decide servir as lingüiças, as asas e os corações de galinha. Sem alternativa, você come, percebe que não estão no ponto, um pouco duros, queimados por fora, mas não há como cuspir; o jeito é engolir.

Agora, as carnes nobres começam a suar sobre a trempe. Você fica ali do lado, copo de cerveja na mão, como se o seu olhar vigilante pudesse apressar a assadura. O álcool sobe-lhe à cabeça e, para segurá-la, você enche o prato de arroz e farofa, e faz uma boquinha enquanto aguarda o churrasco.

Finalmente, maminhas e picanhas estão fatiadas e você, famélico, corre para a fila encabeçada por crianças e adolescentes. Quando chega a sua vez, servem-lhe um pedaço bem menor do que o esperado, e você percebe que a carne está esturricada, sem sabor. Ainda assim, você se empanturra – de raiva; raiva de estar ali, de comer tão tarde, de ter no prato uma carne mal cortada e fora do ponto que você gosta.

E o pior é que o anfitrião, feliz com a própria arte, vem perguntar-lhe o que está achando e você, com aqueles olhos sonolentos de quem sonha com uma boa sesta, responde que está ótimo, nunca comeu carne tão saborosa, embrulhando o estômago com a própria mentira.

Passadas umas semanas, você esquece tudo aquilo e, de novo, aceita outro convite para um churrasco, onde prometem oferecer-lhe as melhores carnes.

Frei Betto é escritor, autor de Comer como um Frade – Divinas Receitas para Quem Sabe Por Que Temos um Céu na Boca (José Olympio, 2003), entre outros livros