Crônica

A fila do Juízo Final

mendonça Grossas nuvens se formam e sopra um vento gelado em mais um dia dos trabalhos do Juízo Final. Atarantados, os serafins tentam pôr em ordem, na imensa fila que […]

mendonça

Grossas nuvens se formam e sopra um vento gelado em mais um dia dos trabalhos do Juízo Final. Atarantados, os serafins tentam pôr em ordem, na imensa fila que reúne toda a humanidade, desde Shakespeare até um australopithecus, desde Newton até um cromagnon, desde Aristóteles até Alexandre Frota. Lá pelo meio da fila, usando um terno bem cortado, um velho senhor está logo atrás de um rapaz magricelo que possui um ar um tanto misterioso (talvez por usar chapéu, óculos escuros e luvas). O velhor senhor cofia seu bigode pintado de preto e puxa assunto:

– Friozinho, não? E dizer que ontem estava tão quente!

– Por mim, tudo bem. Estou acostumado a mudanças.

– Eu também, de certo modo.

– Como assim?

– Eu fui um político.

– E eu um astro pop.

– Que interessante. Acho que temos algumas coisas em comum.

– Sim, falamos para as multidões e temos de nos preocupar com a aparência.
Querendo parecer simpático, o velho senhor elegante resolve fazer uma gentileza: compra duas canecas de chope de um dos querubins que voam sobre a fila com pequenos barris pendurados a tiracolo.

– O meu com bastante colarinho. E você, rapaz, como vai querer o seu?

– Prefiro um garotinho, senhor.

Eles brindam à amizade e continuam a conversa:

– Mas você falava em mudanças, meu rapaz, e esse é um tema que me agrada. Sou inteiramente a favor delas. Mudanças renovam o espírito e ampliam os horizontes.

– Não são muitos os que apreciam esse tipo de atitude.

– São uns desprovidos de imaginação.

– Essa gente tem medo de novas experiências.

– E pior: chamam isso de coerência.

– Quem quer ser coerente?

– Eu, por exemplo, no começo da carreira fui de oposição.

– E eu tinha cabelo pixaim.

– Depois fui para a situação.

– Meu nariz já foi esparramado.

– Eu, depois que cheguei ao poder, nunca mais saí de lá. Mudei de opinião, de partido e de amigos, mas nunca saí do topo.

– Já eu mudei até de cor. E sempre continuei por cima.

– É como diz aquela frase do Lampedusa: “É preciso que as coisas mudem para que tudo fique como está”.

– Já eu prefiro “só quem não tem criatividade é que não muda de idéia”.

– Creio que é hora de nos apresentarmos. Enquanto eu era vivo, me chamavam de José Sarney.

– Muito prazer, Jackson. Michael Jackson.

– Saiba, caro Jackson, que estou feliz por ter encontrado alguém que compartilha das minhas idéias.

– E eu também, senhor Sarney. Nós, os mutantes, somos uns incompreendidos. Sabe, posso até ser condenado a arder no fogo do inferno, mas, no dia do julgamento, vou dizer em alto e bom tom que o comportamento das pessoas é uma coisa de foro íntimo e não deve ser julgado pelas expectativas conservadoras da moral judaico-cristã. As crianças, por exemplo…

– Que é que tem as crianças?

– Quem falou em crianças?

– Você.

– Eu não, Jesus. O senhor não conhece aquele versículo: “Vinde a mim as criancinhas, porque delas é o reino dos céus”?

– Conheço.

– Então.

– Mas o que isso tem a ver com a nossa conversa?

– Nada, eu só estou treinando para o depoimento.

– Ah, claro. Bem, em todo caso, a verdade suprema é uma só: devemos ser como o ramo da palmeira, que se curva aos caprichos do vento mas não quebra.

– O senhor é poeta?

– Já ouviu falar de Marimbondos de Fogo?

– Não. O senhor já ouviu falar de Thriller?

– Nunca.

– Se o senhor quiser, posso lhe ensinar uns passos de dança.

– Vamos lá, meu caro.

– Então faça assim.

– Assim?

– Muito bem! O senhor tem futuro.

– Eu danço conforme a música, meu caro.  

José Roberto Torero é escritor, roteirista de cinema e TV (Pequeno Dicionário Amoroso, Retrato Falado), colunista de Esporte na Folha de S.Paulo e blogueiro (blogdotorero.blog.uol.com.br)