Descartáveis

Seguidor da cartilha bolsonarista, Douglas Garcia esperava apoio, mas será mais um abandonado pela ‘chefia’

Grupo de Bolsonaro tem longa lista de aliados que foram desprezados justamente por criar embaraço por reproduzir fielmente o comportamento e os preceitos defendidos pelo clã

Reprodução/Redes Sociais
Reprodução/Redes Sociais
Antes sorridente com o seu correligionário, Tarcísio tratou de condenar ato de Garcia, para evitar contaminar sua campanha

São Paulo – Poucas horas depois do episódio grotesco em que assediou verbalmente a jornalista Vera Magalhães, o deputado estadual de São Paulo Douglas Garcia (Republicanos) viu seu nome entrar na mira de um possível processo de cassação pela Assembleia Legislativa. E sem que seus grandes “inspiradores” saíssem em sua defesa.

Na noite da terça-feira (13), o parlamentar reproduziu fielmente uma expressão usada pouco mais de 15 dias antes pelo presidente Jair Bolsonaro contra a mesma jornalista. Ao final do debate promovido pela TV Cultura entre os candidatos ao governo paulista Douglas foi provocá-la e, ante a reação de Vera, passou a repetir sem parar “vergonha para o jornalismo”. Ele estava no auditório a convite da equipe de campanha do candidato apoiado pelo presidente, Tarcísio de Freitas, do mesmo partido.

Reproduzindo fielmente a falta de civilidade e misoginia de Bolsonaro no debate entre presidenciáveis na Band, Douglas Garcia certamente esperava ser aplaudido pelo grande chefe. Porém, ao seguir os passos do líder, o deputado não encontrou acolhimento no seio bolsonarista. Ao contrário.

O próprio Tarcísio, que momentos antes do debate tirou foto sorrindo e afagando seu correligionário, também tratou de se afastar de Garcia. “Eu mal conheço, nem tenho contato com esse idiota”, disse o candidato à jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo. “O que a gente presenciou é absolutamente reprovável, lamentável”, postou o indicado por Bolsonaro.

(Facebook/Reprodução)

Tarcísio de Freitas também aparece em comunhão com Douglas Garcia no dia da convenção do Republicanos que sacramentou sua pré-candidatura ao governo de São Paulo. “Seja bem-vindo ao Republicanos, Ministro Tarcísio Governador de SP”, registrou em vídeo próprio Douglas, em sua página no Facebook

Sinais de abandono vieram diretamente da cúpula da “família”. Eduardo Bolsonaro (PL), por exemplo, também foi ao Twitter para classificar como “lamentável” o episódio protagonizado pelo seguidor.

Com alta dose de hipocrisia, e o pai cada vez mais longe da reeleição, o filho 03 do presidente escreveu: “Não há justificativa para provocar uma jornalista e tentar constrangê-la gratuitamente no seu local de trabalho”.

Contudo, em maio, o Conselho de Ética da Câmara dos Deputados abriu processo contra Eduardo depois de este debochar da tortura sofrida pela jornalista Miriam Leitão durante a ditadura. Nas entrelinhas, o filho 03 dá entender que no mundo virtual vale-tudo, mas na vida real nem tanto.

Aos leões

Para a cientista política Rosemary Segurado, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), a “solidariedade” não é um valor para Jair Bolsonaro e seu grupo. Por isso, mesmo quando aliados seguem à risca a cartilha bolsonarista, e fazem ataques com o objetivo de destruir reputações, quando são “pegos” são imediatamente abandonados e arcam sozinhos com as consequências.

“Provavelmente, Garcia terá o seu mandato cassado, porque expôs o bolsonarismo a um conjunto de críticas. Então, será jogado aos leões. Enquanto eles mantêm as mesmas práticas e declarações”, avalia a especialista.

Além do pedido de cassação, protocolado por diversos parlamentares, o Ministério Público de São Paulo (MP-SP) abriu hoje (14) um procedimento no âmbito criminal contra Douglas Garcia. No mês passado, o MP-SP firmou acordo com entidades jornalísticas para receber esse tipo de denúncia. O procedimento contra o deputado estadual é a primeira ação tomada com base nesse acordo.

Soldados feridos e abandonados

O bolsonarismo também exibe códigos e valores do militarismo, mas só os que lhes interessa. Um dos lemas que resume a lealdade na caserna diz que “não se abandona um soldado ferido no campo de batalha”. No entanto, a reação ao episódio envolvendo Douglas Garcia, o mais recente entre outros, indica que Bolsonaro e seu grupo abandonam facilmente seus “valores morais” em nome da sobrevivência política.

Foi assim também durante o processo de cassação do vereador Gabriel Monteiro (PL-RJ). Nem sequer o seu colega da Câmara carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos) o apoiou. O filho 02 faltou à sessão que cassou o mandato de Monteiro, pois está de licença para participar da campanha presidencial.

O youtuber e ex-PM virou réu, acusado de filmar relação sexual com uma adolescente e divulgar em suas redes sociais e de assediar sexualmente uma ex-assessora. Antes do escândalo eclodir, no entanto, Monteiro era a principal aposta do partido do presidente para a Câmara dos Deputados. Após a sua cassação, e consequente perda de direitos, nenhum membro da família presidencial se manifestou sobre o destino do soldado.

Esquecida

A ativista de extrema direita Sara Giromini, conhecida como Sara Winter, também foi abandonada pelo clã Bolsonaro. Ainda em 2020, ela e o seu “Acampamento dos 300” serviam como ponta-de-lança do bolsonarismo nos ensaios de ataques ao STF, que não cessaram desde então.

Ela foi presa, em junho daquele mesmo ano, após uma saraivada de fogos de artifício contra a sede da Suprema Corte. Desde então, se ressente de não ter sido socorrida pelo presidente e sua família. Hoje casada e morando nos Estados Unidos, diz que não vai apoiar nenhum candidato nessas eleições. No ano passado, em entrevista à revista IstoÉ, ela disparou contra o presidente e seus apoiadores.

“Não tem mais como defender Bolsonaro. Mas se ele pedir para os bolsonaristas comerem merda, as pessoas vão comer”.

Exceções à regra

Até mesmo militares de alta patente, como os generais Rêgo Barros, Fernando Azevedo e Santos Cruz, que ocuparam cargos no primeiro escalão do governo, em pouco tempo foram condenados ao ostracismo. Eles foram abandonados, após entrarem em choque com o próprio presidente, ou com os filhos, em especial, Carlos, tido como de personalidade instável e agressiva, assim como o pai.

Os únicos aliados de primeira hora do bolsonarismo que ainda recebem alguma consideração foram o deputado Daniel Silveira (PTB) e o ex-assessor Fabrício Queiroz, acusado de comandar o esquema de rachadinha da família.

Em abril, o STF condenou Silveira a 8 anos e 9 meses de prisão por estimular atos antidemocráticos e ameaçar instituições, como a própria Corte, também seguindo à risca a cartilha do bolsonarismo. Um dia após a condenação, ele foi salvo por Bolsonaro, de quem recebeu a “graça presidencial”, indultando a sua pena. Contudo, o Tribunal Regional Eleitoral do Rio (TRE-RJ) negou na semana passada o registro de sua candidatura ao Senado. No entendimento do tribunal, o indulto não isenta o parlamentar da perda dos direitos políticos por oito anos.

Caixa-preta

Já Queiroz, que guarda segredos operacionais e financeiros da família presidencial, se filiou ao PTB e quer uma vaga na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, local onde trabalhou como assessor de Flávio Bolsonaro. Ele chegou a ser preso, em 2020, a pedido do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ).

Os promotores o acusaram de comandar o esquema de rachadinha, que movimentou pelo menos R$ 2,7 milhões, a partir da arrecadação de parte dos salários dos assessores do filho mais velho do presidente. O Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no entanto, decidiram pelo arquivamento da denúncia, após anularem as provas do caso.

Gozando da impunidade, Queiroz chegou recentemente a desafiar os Bolsonaro, quando perguntado se contaria com o apoio da família presidencial durante a campanha. “Quero que vocês perguntem isso a eles. Eu quero ver eles dizerem que não vão me apoiar”, disse ele em entrevista ao podcast Mais Ou Menos, em julho.

Sobre Queiroz, a situação é diferente, diz Rosemary Segurado.

“Ele só teve certo acolhimento porque é uma caixa-preta. Ele sabe de muita coisa, tem muitas informações. Então, certamente não será abandonado. Porque se ele vier a público e falar tudo o que sabe, complica muito o grupo de Bolsonaro.”

Misoginia como bandeira

O relatório “Violência de Gênero Contra Jornalistas”, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), mostra que, no ano passado, 62 mulheres jornalistas foram vítimas de agressões, ofensas, intimidações e ameaças, totalizando 78 ataques. A apresentadora da CNN Brasil Daniela Lima figura no topo da lista. Bolsonaro chegou a chamá-la de “quadrúpede”, durante entrevista em frente ao Palácio do Planalto, em 1º de junho.

Para a colunista Milly Lacombe, no UOL, a gênese da utilização do machismo e da misoginia como arma política ocorreu em 2003, quando o então deputado Bolsonaro atacou a deputada Maria do Rosário (PT-RS), no Salão Verde da Câmara. “Só não te estupro porque você não merece”. “Nada aconteceu”, frisou a jornalista – nem protestos por parte da imprensa. Em 2016, contra a mesma parlamentar, ele dobrou a aposta. “Ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou estuprador mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece”. “Ali, foi sacramentado o caminho a seguir”.

A Justiça tardou, mas a condenação veio. Em 2017, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) condenou Bolsonaro a indenizar Maria do Rosário em R$ 10 mil por danos morais, obrigando-o também a se retratar via imprensa e nas redes sociais. Dois anos depois, o Supremo Tribunal Federal (STF), manteve a condenação, após negar recurso do já então presidente.

Não deixar para o 2º turno o que se pode fazer no 1º

Mas a principal fatura deve chegar, de fato, em 2 de outubro. Não sem motivos, o eleitorado feminino repudia Bolsonaro. De acordo com a última pesquisa Datafolha, 47% das mulheres preferem Lula, contra 29% que apoiam o atual presidente. Sua rejeição entre elas, alcança 55%. Ele também foi apontado por 51% do eleitorado como o candidato que mais ataca as mulheres. São números como esse que explicam a guinada recente no comportamento dos bolsonaristas. Talvez tenham se dado conta que é muito difícil se eleger hostilizando uma fatia que representa mais da metade do eleitorado.

Milly Lacombe alerta que ataques a jornalistas ainda aumentarão até o fim do ano. “O resultado das urnas, qualquer que seja ele, não mudará o cenário. Os capangas de Bolsonaro já foram comandados e autorizados a nos atacar. Tivéssemos interrompido isso quando Maria do Rosário foi criminalmente insultada, não estaríamos aqui. Alguém que diz o que disse Jair Bolsonaro não pode ter vida política. Com uma pessoa dessas, não tem diálogo – tem o expurgo”, afirma.