200 anos

Cidadania, participação, pobreza, violência, submissão. Qual independência o Brasil comemora hoje?

A RBA perguntou a pessoas de vários setores o que falta para o Brasil ser de fato um país independente

Camila Borges/MPA
Camila Borges/MPA
Movimentos dos Pequenos Agricultores (MPA), dos Atingidos por Barragem (MAB), dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e dos Camelôs (MUCA), estendem faixa nos Arcos da Lapa em denúncia aos milhões de pessoas que passam fome no Brasil

São Paulo – O Brasil comemora neste 7 de setembro 200 anos de sua independência formal, com o rompimento dos laços com Portugal. Mas isso não o livrou, do ponto de vista histórico, de seu vínculo com interesses econômicos de outros países. Internamente, apesar de avanços, o país continuou negando direitos e participação à maioria. Assim, tem a desigualdade como marca crônica.

Por isso, a RBA perguntou a pessoas de diversas áreas o que falta para o Brasil se tornar de fato um país independente. Cada um fez sua reflexão, com questionamentos que de alguma maneira se encontram. (Confira abaixo.)

A pergunta também encontra eco na canção A Cara do Brasil, de Vicente Barreto e Celso Viáfora. Eles também lembram que a solução está dentro do país.

O Brasil é o que tem talher de prata
Ou aquele que só come com a mão?
Ou será que o Brasil é o que não come
O Brasil gordo na contradição?

(…)
O Brasil é uma foto do Betinho
Ou um vídeo da Favela Naval?

São os trens da alegria de Brasília
Ou os trens de subúrbio da Central?

(…)
O Brasil encharcado, palafita?
Seco açude sangrado, chapadão?
Ou será que é uma Avenida Paulista?
Qual a cara da cara da nação?

A gente é torto igual Garrincha e Aleijadinho
Ninguém precisa consertar
Se não der certo a gente se virar sozinho
Decerto então nada vai dar

HISTÓRIA: Nos 150 anos da Independência, ditadura mostrou máquina de propaganda


Condição cidadã

O poeta Carlos Drummond, em poema corajoso, interroga em uma estrofe ou verso – “onde Brasil” – referindo a essa ideia cultivada entre nós, de um país que a narrativa oficial busca fixar. Uma pergunta que persiste contra toda evidência. Mesmo quando se celebra a oficial data de 1822, milhões de brasileiros excluídos da mínima condição cidadã ainda sonham acordados com “um possível país do futuro“.

Ailton Krenak, líder indígena e ambientalista


Sem espaço para participação

Penso que o Brasil não é e nunca será um país independente porque historicamente negou a real participação do povo Preto no processo de independência. Essa frase de Dom Pedro nas margens do Rio Ipiranga “Independência ou Morte” nunca nos tornou realmente independentes. E falando sobre morte, até hoje e depois de tantos séculos, sabemos muito bem quem morre na luta por independência nesse país, nós Pretos e Pretas.

Nessa história do Brasil independente nunca houve espaço para a participação efetiva do povo preto. Fomos e assim somos negados a participar do projeto de construção desse país.

Mas mesmo assim, nós, povo Preto, nos organizamos para realizar muitas revoltas para a real independência e a real liberdade nesse país chamado Brasil.

Posso numerá-las começando pela Revolta dos Malês (1835), Balaiada (1838-1841) e Conjuração Baiana (1798). Marcos históricos e inspiração para continuarmos na luta pela real independência desse país.

Beth Beli, educadora e percussionista, Bloco Afro Ilú Oba De Min

independência do Brasil
Beth Beli, Ailton Krenak, Daniel Cara e Creuza de Oliveira: diferentes visões, diagnósticos semelhantes (Fotos: Krenak/Agência Envolverde, Beth/reprodução, Creuza/divulgação e Cara/reprodução/epsjv.fiocruz.br)

O povo ainda não teve independência

A gente sabe que a independência foi proclamada, mas o povo brasileiro ainda não teve a independência necessária para sobreviver, como um emprego de qualidade, educação, saúde, condições decentes de vida, saneamento básico, essas coisas. A maioria da população mora em situação de risco, sem condições decentes, esgoto a céu aberto. Depois desse desgoverno Bolsonaro piorou a situação. Os movimentos que estão sempre na ativa, lutando pelos direitos do povo, estão cada dia mais enfraquecidos.

Então, a gente vive uma situação de total risco, né? A qualquer momento a gente não sabe o que pode acontecer com o nosso país. Mas o brasileiro é sonhador, continua acreditando em uma política de igualdade. O movimento negro luta por isso, de mulheres, nós enquanto movimento sindical estamos na luta também. Mas a gente vê o meio ambiente sendo destruído, é muito séria a situação. A gente não é tão independente como gostaria.

Tem gente morrendo de fome, com essa questão da pandemia muitos morreram por falta de medicamentos, da vacina, e aí a gente ficou dependendo do governo liberar as vacinas. Ficamos dependendo de uma canetada de um chefe da nação. Então, essa independência ainda é muito precária.

A gente vive num país que é dependente das eleições, dos governantes, muitos deles que estão lá não representam o povo de fato, votam em políticas contrárias aos nossos direitos. Então, o país não é tão independente.

Deixa muito a desejar para que seu povo seja independente, muito mesmo. Eu fico pensando no futuro dos nossos jovens, das nossas crianças, onde a gente não tem escola em tempo integral, creche escola de qualidade…

Creuza Oliveira, secretária-geral da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad)


• Interesses externos

A independência formal do Brasil é controversa. Em primeiro lugar, não foi um processo pacífico. Tampouco foi um processo revolucionário. A independência serviu aos interesses de nações europeias. E hoje voltamos a ser essencialmente agro-exportadores, uma economia de commodities. Falar em independência é complexo, então é mais fácil dizer que o Brasil não é um país plenamente soberano. E nunca foi. É triste dizer isso, mas é a verdade.

Para ser soberano – e até mesmo independente, pois independência é basicamente exercício pleno de soberania –, é preciso que exista um sentimento nacional alicerçado em condições de vida dignas para todas e todos, estabelecendo uma sólida e comprometida comunidade nacional. E para tanto, no século 21, é preciso de Educação, Ciência e Tecnologia na busca por inovações – essa deve ser a marca da industrialização. É preciso, portanto, uma economia a serviço das pessoas brasileiras. E nossa história é das brasileiras e dos brasileiros a serviço do capital estrangeiro e de seus sócios minoritários e provincianos, os perdulários empresários brasileiros, forjados na nefasta lógica da casa-grande e da senzala. É preciso educação de qualidade até mesmo para formar uma nova elite.

Daniel Cara, educador


Violência histórica

O Brasil não é independente enquanto a gente não tiver politicas afirmativas sólidas, inquestionáveis a fim de mitigar as violências históricas contra grupos minoritários (minoritários em direito, não necessariamente em números).

Joanna Maranhão, ex-atleta


• Estratégia nacional

Olhando pelo enfoque da sustentabilidade tecnológica do sistema de saúde brasileiro, existe uma extrema dependência tecnológica do Brasil em relação a princípios ativos de medicamentos, biofármacos, equipamentos e insumos, que ficou evidente, para a sociedade, durante a pandemia.

Necessitamos de uma estratégia nacional, para a construção de uma base produtiva e tecnológica nacional, resultado do encontro das políticas de saúde, industrial, de inovação e de C&T, em uma perspectiva desenvolvimentista.

Uma política de Estado de redução da vulnerabilidade tecnológica do SUS centrada em tecnologias estratégicas para o país.

José Gomes Temporão, ex-ministro da Saúde


independência do Brasil
Mara Régia, Paulo Nogueira, Temporão e Joanna Maranhão: liberdade e soberania dependem de políticas (Fotos: Joanna Maranhão/reprodução, Temporão/divulgação-STF, Mara/divulgação e Paulo Nogueira/Wanezza Soares)

Substituir o grito

Liberdade não se ganha no grito! Independência muito menos!
Não por acaso, passados 200 anos da Proclamação feita por Dom Pedro I às margens do riacho do Ipiranga em São Paulo, ainda estamos revisitando a história em busca da verdade que se esconde por trás dos fatos que nos fizeram acreditar no heroísmo de um brado retumbante de “Independência ou Morte!”

Cá pra nós, o pintor Pedro Américo, carregou muito nas tintas ao tentar retratar a cena que pretensiosamente tinha a intenção de ser a pedra angular da construção de uma nação autônoma politica e economicamente diante do mercado internacional.

Com base em novas pesquisas e análise documental, hoje sabemos que o grito de Dom Pedro pode ter sido de dor, já que ele estava com uma tremenda dor de barriga em 7 de setembro de 1822.

E entre o que é fato e o que é fake, a exemplo de outras tantas mentiras reveladas recentemente, impressiona saber, por exemplo, que o imponente cavalo criado por Pedro Américo no quadro feito sob encomenda não passava de uma mula, que era um animal muito utilizado na época, para grandes viagens.

Em suma, até mesmo a enorme comitiva que, supostamente, acompanhava o grito de “Independência ou morte” não passava de 14 pessoas, e o famigerado Grito de Dom Pedro I também não ocorreu às margens do rio Ipiranga, mas sim em uma colina que ficava localizada próximo ao riacho Ipiranga.

Diante de todas essas evidências, resta-nos substituir o grito de Pedro Américo pela obra-prima do pintor norueguês Edvard Munch, que fez do seu Grito, criado em 1893, o símbolo a solidão, da melancolia , da ansiedade e do medo, sentimentos que rondam a nossa democracia nesta Semana da Pátria!

Mara Régia, jornalista e radialista


Interesse nacional

A escolha é clara: independência ou a vida diminuída das colônias e das nações subordinadas! Se existissem nações hegemônicas benevolentes, ainda poderíamos optar por nos colocar à sombra de uma delas. Mas isso nunca existiu e nunca existirá.

A dinâmica política interna nos países mais avançados exige que o interesse nacional passe na frente dos interesses dos povos colonizados ou subordinados. Estes serão sempre submetidos ao propósito de facilitar a solução dos problemas e conflitos da metrópole, como mostra inequivocamente a história milenar dos impérios de todos os tempos.

Paulo Nogueira Batista Jr., economista, ex-diretor do Fundo Monetário Internacional


Festejamos a independência, mas temos uma soberania a resgatar

independência do Brasil
Dowbor: elites internas e interesses externos afetam independência do Brasil (Foto: Vanessa Nicolav/BdF)

Por Ladislau Dowbor, economista

A economia hoje é em grande parte globalizada. Em particular, com o dinheiro impresso por governos substituído por dinheiro virtual emitido também por bancos (97% da liquidez), as finanças passaram a funcionar em escala planetária. Por exemplo, três corporações privadas, BlackRock, Vanguard e State Street, administram cerca de 20 trilhões de dólares, três vezes o orçamento federal dos Estados Unidos. A globalização financeira reduz drasticamente a autonomia dos países definirem os seus rumos, já não só frente a países mais fortes, mas frente ao poder corporativo. Basicamente temos governos nacionais que enfrentam uma economia globalizada. O conceito de independência encontra aqui uma limitação estrutural.

Um segundo eixo que limita a autonomia de decisão é o controle norte-americano sobre as transações internacionais, por meio da dominação do dólar. Essa herança de Bretton-Woods, do fim da II Guerra Mundial, permite aos Estados Unidos emitirem dólares sem limites, sem gerar inflação ou desvalorização do dólar, na medida em que são absorvidos por bancos centrais de diversas partes do mundo.

Tentativas de os países comercializarem entre si sem passar pelo dólar e taxas de transação são até hoje atacados militarmente pelos Estados Unidos (Iraque e outros). Um novo polo está se constituindo, inicialmente com China, Rússia e Irã, e numerosos interessado. A soberania do dólar é uma herança da hegemonia americana de 1945, hoje fragilizada e pouco realista. As propostas em discussão vão no sentido de um sistema internacional com várias moedas, mas por enquanto a limitação à soberania continua.

A soberania de uma país depende também da sua capacidade de canalizar os recursos financeiros segundo as suas prioridades.

A facilidade com a qual os recursos financeiros no Brasil são canalizados para paraísos fiscais torna qualquer tentativa de regulação muito precária. No Brasil o poder das corporações internacionais do agronegócio, ADM, Bunge, Cargill e Dreyfus (ABCD), que controlam 80% do comércio de grãos, leva a que o país priorize exportações, enquanto 33 milhões de pessoas passam fome, e 125 milhões estão em situação de insegurança alimentar. A Índia, por exemplo, frente ao problema da fome, proibiu as exportações de trigo.

O Brasil não só mantém a fome como isentou os exportadores de impostos (Lei Kandir, 1996), e os lucros e dividendos distribuídos são igualmente isentos de impostos (1995). O país é simplesmente drenado, inclusive com o ministro da Economia escondendo milhões em paraíso fiscal (sob o nome código Dreadnaught). Ou seja, a opção de orientar os recursos para onde o país deles precisa, se vê muito limitada pelo sistema internacional de dreno. Em 2012, o Tax Justice Network estimou que o volume de capitais brasileiros em paraísos fiscais era da ordem de um terço do nosso PIB.

Interesses semelhantes atingem a autonomia energética. O fato do Brasil ter forte base hidroelétrica, e grandes reservas de petróleo, deveria assegurar independência no setor. Não se imagina a China, por exemplo, entregar o controle da sua base energética a corporações transnacionais. A Petrobrás, no quadro de um governo submisso a interesses internacionais, passou a cobrar preços absurdos no mercado interno – não há nenhuma razão econômica de se cobrar preços internacionais por um produto que é nacional – de forma a alimentar acionistas globais com dividendos elevados.

Acionistas nacionais estão amarrados aos interesses internacionais, gerando travamento da economia pela elevação de preços da energia.

Custos energéticos impactam numerosos setores. O processo pode ser encontrado nas diferentes privatizações: ao abrir acesso aos recursos do país pelos acionistas internacionais – por exemplo BlackRock, Glencore, Billiton e outros – com os seus aliados internos, perde-se a capacidade de usar recursos primários para financiar atividades industriais, ciência e tecnologia e semelhantes. Grande parte do legislativo depende de lucros indiretos obtidos pelo dreno de riquezas assim constituído. A privatização, na medida em que abre as empresas para compra de ações, significa desnacionalização. A Vale é um exemplo claro.

A independência cultural tem uma importância essencial. Mas a mídia comercial vive de publicidade paga em parte dominante pelos mesmo interesses. Quando vemos grandes jornais explicarem que devemos pagar os preços internacionais por um produto que é da nação, é o próprio conteúdo jornalístico que é apropriado pela lógica corporativa e da ideologia norte-americana. É muito impressionante varrermos os canais de televisão para encontrar um filme decente, passando por uma sequência de conteúdos quase idênticos, norte-americanos, com aviso de “violência, sexo, drogas”. O mundo tem uma imensa riqueza cultural que não aparece. O vazio cultural criado não aparece como vazio, pois sequer o conhecemos. O uso político da religião nos faz olhar para os céus quando deveríamos olhar para as crianças que passam fome.

É importante entender que hoje o país perdeu grande parte da sua independência não por intervenções ou ameaças externas, mas pela constituição de elites internas que são “clientes” (no sentido de Estado clientelista) dos interesses externos. A dependência está enraizada na força das fortunas internas e dos seus representantes políticos.

A perda de soberania tem poderosas raízes locais. Há conexões profundas entre a desigualdade explosiva, a miséria de tantos, a entrega dos recursos naturais, o endividamento generalizado da população, e a orientação geral da economia e da política.

Há poucos anos o Brasil foi tirado do mapa da fome, hoje a fome se generalizou. O país tinha se industrializado.

Hoje apenas dois setores são pujantes na economia: a exportação de bens primários e a intermediação financeira, ambos ligados aos mesmos interesses de um mundo financeirizado. A chamada autonomia do Banco Central, tirando do governo ferramentas de regulação financeira, completa um quadro de entrega de soberania que hoje depende mais de quem manda no dinheiro do que de quem manda na tropa. Quando vemos quem se veste de bandeira do Brasil, não podemos deixar de ver a ironia.

O reverso da medalha é que voltar a desenvolver o país em função dos interesses nacionais, do interesse geral da população, envolve uma reorientação econômica profunda: eliminar a Lei Kandir, para que a alimentação sirva ao país que a produz. Voltar a cobrar impostos sobre lucros e dividendos, para que os ricos paguem um imposto como o paga a população em geral. Usar as receitas geradas para voltar a financiar a educação, a ciência e a tecnologia, a pequena e média indústria, a saúde, as políticas ambientais.

A independência hoje significa colaborar com a comunidade internacional para enfrentar os dramas globais, construir uma sociedade mundial economicamente viável, mas também socialmente justa e ambientalmente sustentável.

Colaboração construtiva, em vez de submissão. O que fazer não é mistério: voltar a usar os recursos em função do bem comum. Isso gera PIB, gera emprego, gera desenvolvimento, e sobretudo resgata a dignidade nacional.


Leia também


Últimas notícias