Violações legitimadas

‘PEC do desespero’ e ‘sala secreta de Lira’ violam regras do jogo democrático, afirma jurista

Professor e integrante da ABJD, Rogério Dultra dos Santos diz que se a PEC que permite ao presidente Bolsonaro furar o teto de gastos para abrir os cofres públicos, a três meses da eleição, for aprovada, a fragilização da democracia brasileira ficará evidente. Emendas secretas também funcionam como “elemento que desestabiliza o sistema”

Antônio Augusto/Câmara dos Deputados
Antônio Augusto/Câmara dos Deputados
"É preocupante que a gente esteja caminhando nessa direção porque a médio prazo isso significa um rompimento com as regras mais elementares do jogo e dos procedimentos democráticos", justifica

São Paulo – A aprovação pela Câmara dos Deputados da chamada “PEC do Desespero” marcará “um novo modelo político”. E desse modo, “o toma lá, dá cá” e as violações das regras do jogo democrático, às vésperas das eleições, passarão a ser consideradas normais. É o que alerta o professor Rogério Dultra dos Santos, da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

Em entrevista a Glauco Faria, no Jornal Brasil Atual, o jurista diz que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 01/2022, evidencia uma “fragilização da democracia”. E que se consolidará com um eventual apoio dos deputados, após aprovação pelo Senado. A PEC permite ao governo de Jair Bolsonaro instituir Estado de Emergência e, com isso, furar o teto de gastos. E assim, abrir os cofres públicos, a três meses das eleições, sem infringir a legislação eleitoral. 

Na prática, a medida é uma maneira que a gestão federal encontrou de contornar a proibição que atualmente o impede de criar um pacote social em ano eleitoral. E, com isso, reverter sua reprovação, já que, com o Estado de Emergência, o presidente poderá turbinar programas sociais como o Auxílio Brasil e o vale-gás. Assim como criar o auxílio a caminhoneiros e taxistas e financiar a gratuidade de transporte coletivo para idosos. As iniciativas, no entanto, não são programas estruturantes e duram apenas até o final de dezembro.

Minorias em risco

Não à toa, a proposta também recebeu o apelido de “PEC da Reeleição”. Isso porque, conforme descreve Santos, ela indica que “o presidente não conseguiu demonstrar uma capacidade de governo”, principalmente diante da população mais pobre. “Essa é uma questão, a incompetência, a inapetência e a incapacidade de o governo Bolsonaro resolver problemas emergenciais. Visto que esse governo foi marcado pela crise da covid-19, da pandemia. E ele não conseguiu realizar o que deveria ser realizado”, critica o professor. 

Santos diz ainda que há uma “violação explícita” da legislação eleitoral que não permite qualquer tipo de acréscimo ao orçamento às vésperas de um pleito. Além disso, segundo o jurista, a tramitação no Senado também desrespeitou o regimento interno, ao votar a PEC em dois turnos, na mesma hora. O que significa, a médio prazo, “um rompimento com as regras mais elementares do jogo e dos procedimentos democráticos”, adverte. 

“Democracia se espelha na regularidade de procedimentos, especialmente no parlamento, que permitem a convivência das maiorias com as minorias. Então quando uma maioria eventual, como é o caso da que apoio o governo federal, ela atropela as regras do jogo, isso significa que o Legislativo prepara uma quebra de regras no sentido de que não se vai mais querer prestar atenção às minorias legislativas, e sociais de modo geral”, relaciona. 

Tramitação na Câmara 

A aprovação, contudo, da chamada PEC do Desespero é dada como certa na Câmara. O texto deve, porém, passar por mudanças, conforme já divulgou o deputado Danilo Forte (União Brasil-CE), escolhido relator da proposta. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o parlamentar disse que vai negociar também a inclusão de um auxílio-gasolina para motoristas de aplicativo. E anunciou que o estado de emergência pode cair se houver condições jurídicas de liberar as verbas por meio de uma brecha na lei do teto de gastos que acredita ter.

“Nós estamos vivendo também uma crise financeira. Então, eu quero ver se essa argumentação serve de embasamento jurídico para evitar o termo jurídico estado de emergência”, argumentou o relator. Forte declarou ainda que o governo Bolsonaro sinalizou que o custo das medidas, hoje calculado em R$ 41,25 bilhões, pode chegar até R$ 50 bilhões, com a inclusão do auxílio-Uber, por exemplo.

Sala secreta de Lira

A proposta do Senado já prevê, por exemplo, a ampliação de R$ 400 para R$ 600 mensais do Auxílio Brasil. Além da criação de uma bolsa-caminhoneiro de até R$ 1 mil e de um auxílio-gasolina de R$ 200 para taxistas. Dultra dos Santos ressalta, no entanto, que falta respaldo técnico sobre as condições de controle e distribuição desse volume de dinheiro. Segundo ele, os riscos são inúmeros de desvios de verbas até ao rompimento democrático, pela forma como o projeto foi pautado.

Da mesma forma, ele avalia o chamado orçamento secreto, criado pelo governo federal para angariar apoio do Congresso. Reportagem do Estadão denunciou que o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), criou uma “sala secreta” nos corredores do Congresso Nacional, em Brasília, para poder liberar as últimas emendas do relator antes do prazo de restrição eleitoral que passou a valer neste sábado (2). Além disso, também foi incluído um artigo na lei de diretrizes orçamentárias de 2023 que torna obrigatória a liberação dessas chamadas emendas do relator no Orçamento Geral da União. 

Para o jurista, numa eventual mudança de governo, após a eleição, o novo presidente terá de lidar com um orçamento praticamente carimbado, por conta dessa manobra. Além de lidar com as consequências da crise social, sem quais após o dezembro. “Da mesma forma que a PEC do Desespero de Bolsonaro, as emendas secretas também funcionam como um elemento que desestabiliza o sistema democrático”, finaliza o professor da UFF. 

Saiba mais na entrevista

Redação: Clara Assunção


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