O dilema

Lógica das redes sociais premia falsos moralistas e ataca a democracia

Mamãe Falei, Daniel Silveira, Kim Kataguiri. Falsos moralistas alavancados pelas redes sociais caem, a espetacularização da política segue solta na internet

Arquivo/EBC
Arquivo/EBC
As estratégias destes grupos passam pela espetacularização da política com o uso frequente de falso moralismo. Também não é rara a presença de desinformação

São Paulo – O Conselho de Ética da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) aprovou, na última semana, a cassação do deputado Arthur do Val (sem partido), conhecido como Mamãe Falei. A decisão ainda deverá ser referendada pelo plenário da Casa, em sessão ainda sem data marcada. O ainda parlamentar é ligado ao Movimento Brasil Livre (MBL), que ganhou destaque com o alinhamento ao bolsonarismo nas redes sociais, especialmente e pelo seu papel na construção do golpe contra a ex-presidenta Dilma Rousseff (PT), em 2016. As estratégias destes grupos passam pela espetacularização da política com o uso frequente de falso moralismo. Também é comum o uso de desinformação, as chamadas fake news. Características que sequestraram o debate político no Brasil neste último período.

Porém, muitos destes políticos alavancados neste processo hoje revelam suas verdadeiras faces. Representantes da direita e extrema-direita, eleitos como “guardiões” dos bons costumes, agora estão envolvidos em processos de diversas naturezas. O caso de Mamãe Falei é exemplar, mas não é único. Com ele estão companheiros de MBL, como o vereador carioca Gabriel Monteiro (PSD) e o deputado federal Kim Kataguiri (União Brasil). Também é possível citar o Daniel Silveira (PSL), réu em processo por ameaças às instituições democráticas e por difusão de fake news.

Mamãe Falei foi flagrado em áudio sexista, pouco mais de um mês atrás, em uma “aventura” com tons de turismo sexual pela Ucrânia já assolada pela guerra. Monteiro é alvo de investigações e processos que envolvem escândalos como estupro, assédio moral e sexual de menores, além de improbidade administrativa. Kataguiri participou de um podcast onde “passou pano” para a criação de um partido nazista no Brasil.

Horda da desinformação

Mesmo com todos os flagrantes de desvios de conduta, chama a atenção a manutenção do engajamento obtido por estes políticos nas redes sociais. Para o professor de jornalismo na Faculdade Cásper Líbero Rodrigo Ratier, a lógica desses grupos pode estar desgastada, mas ainda vigora e deve influenciar nas eleições do fim do ano.

“A influência das redes continua. (Isso em razão das) As lógicas imperativas de julgamento mais sumário, desta influência pela imagem e espetacularização. Mamãe Falei se fez muito em cima deste recurso de confrontar adversários para mostrar, supostamente, hipocrisia, ignorância. Isso se mantém, mas com algum desgaste”, disse à reportagem da RBA.

“No caso do MBL, teve uma aposta forte em cima de um moralismo que, em um significado pejorativo, se aproxima da hipocrisia. Eles se mostraram ‘paladinos’ contra a corrupção, pela interdição de museu, estratégias de visibilidade. Na prática, se mostraram absolutamente contrários a esse tipo de coisa. Isso acabou sendo evidenciado. O moralista também está exposto. A partir do momento do deslize, isso vai ser cobrado”, explica.

Problema que segue

Contudo, essa “lógica da espetacularização pela polêmica” deve seguir forte em certos setores da sociedade. “Tenho alguns elementos para achar que essa lógica da espetacularização, pela polêmica, esteja dando alguns sinais de desgaste, ou será apropriada por algumas figuras; como o bolsonarismo e seu entorno.”

Para que o cenário não se repita e aprofunde o desgaste do Estado Democrático de Direito no Brasil, Ratier associa a solução à vontade política. “Penso que isso vai depender de como os políticos vão se comportar. Vão continuar compensando o engajamento pela polêmica ou vão buscar um debate de respeito a uma esfera pública preocupada com a democracia? Se houver uma transformação, esse tipo de discurso fica mais ‘nichado'”.

O império deste “esgoto das redes sociais” no debate político perpassa características diversas da sociedade. Entre elas, a falta de regulamento destes meios “novos” de comunicação, que sob pretexto de liberdade de expressão acabam por privilegiar discursos populistas, muitas vezes fascistas e falsamente moralistas. “Parte da população foi educada a entender que essa postura falsamente combativa é debate. Mas é para gerar visibilidade. Essas pessoas podem continuar sendo atraídas por este tipo de lógica”, completa.

A máquina não coopera

“A questão da desinformação precisa ser vista de uma forma mais integrada. Não se trata apenas de educação midiática para a população. Muita gente, mesmo tendo competências bem desenvolvidas, acaba passando fake news para frente. Muitas vezes motivadas por aspectos emocionais, envolvidos muito fortemente em disputas políticas. Para que seu candidato tenha discurso mais fortemente disseminado. Então, a coisa passa um pouco pela educação, mas não só por ela. Tem outros aspectos, como o desincentivo à prática de fake news nas redes. Restringir a monetização destes conteúdos é muito importante. A proposição de legislações específicas para combater fake news é importante existir”, argumenta Ratier.

Dentro deste cenário de descontrole, mesmo com a queda de muitos falsos moralistas, a influência negativa das redes sociais para o debate político com foco na democracia e na cidadania tendem a permanecer. “O fundamental que pode acontecer, mesmo eu não vendo esse caminho, seria a derrubada de desinformação pelas plataformas. Aquelas mais opacas, como o WhatsApp, podem ter posturas mais duras para encaminhamento de conteúdo. Acho que isso não vai acontecer. Mas, novamente, a grande arena da desinformação será o WhatsApp. Não acho que vai ser tanto o Telegram. Pode ser um espaço de pessoas mais engajadas, com peças mais agressivas, que eventualmente caem no mainstream.”

Regular é preciso

Para Ratier, uma regulação neste setor é urgente. “Não autoregulação. Sou a favor de um modelo de coregulação, que inclua as plataformas e também a sociedade civil; representantes nos estados. A esfera pública é fundamental para a garantia da democracia, para a formação da opinião pública preocupada com a perpetuação desta sociedade, com a promoção de direitos e da cidadania”. “O debate hoje não respeita regras. É absolutamente cruel, pautado muitas vezes por informações enganosas, ocorrem assassinatos de reputações. Precisa haver regulação. A liberdade de expressão é um direito fundamental, mas não é absoluto. Muitas vezes a liberdade de expressão se coloca contra o direito à vida, por exemplo. Você precisa ter uma mediação. Isso é a regulação”, finaliza.