Equívocos

Especialista aponta erros nas orientações do relatório da CPI para combater fake news

Recomendações apontam para mudanças legais que, na prática, podem desproteger dados pessoais e igualar, no âmbito criminal, quem produz e quem divulga desinformações

Pillar Pedreira/ Agência Senado
Pillar Pedreira/ Agência Senado
Especialista pondera que a "criminalização dos usuários" deixa de lado "os grandes que realmente partilham e produzem desinformação"

São Paulo – O relatório final da CPI da Covid, apresentado pelo senador Renan Calheiros (MDB-AL), faz recomendações sobre alterações legais para combater a disseminação de fake news. Mas, segundo diversas entidades que trabalham pela democratização da comunicação, há erros nas orientações listadas que podem provocar um efeito reverso na prática. 

Entre as 17 propostas legislativas, o documento torna crime o ato de “criar ou divulgar notícia que sabe ser falsa para distorcer, alterar ou corromper gravemente a verdade” em temas do “interesse público”, como saúde, segurança e economia, e propõe pena de prisão de seis meses a dois anos. O que para a jornalista, doutora em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB) e integrante do coletivo Intervozes Helena Martins, “parece desproporcional”. 

Professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), onde coordena o Laboratório de Economia, Tecnologia e Políticas de Comunicação (Telas), Helena explica, em entrevista a Glauco Faria, no Jornal Brasil Atual, que é “fundamental” trazer à tona o tema que preenche um capítulo com mais de 200 páginas no relatório final. “A desinformação causou efetivamente milhares de mortes no Brasil e no mundo e é uma questão que tem que ser enfrentada”, destaca.

Controvérsias

No entanto, a especialista pondera que a criminalização dos usuários deixa de lado “os grandes que realmente partilham e produzem desinformação e constroem um ecossistema todo desinformativo, inclusive o presidente da República, Jair Bolsonaro”, ressalta. 

De acordo com Helena, há uma dificuldade de precisão no conceito de desinformação estabelecido que pode abrir caminho para diversas interpretações. O texto da proposta trata que “não é considerada notícia falsa a manifestação de opinião, de expressão artística ou literária, ou de conteúdo humorístico”, o que pode não ser suficiente. “Inclusive na academia já há vários conceitos e dificuldades de se apontar, porque às vezes desinformação pode ser algo descontextualizado, uma mentira, ou um erro. É muito mais efetivo, e tem um risco menor de imprecisões, focar efetivamente na produção de campanhas de desinformação de forma organizada e financiada”, sugere.

As plataformas de aplicativos de mensagem e redes sociais, por sua vez, poderão armazenar o CPF ou CNPJ dos usuários, assim como o nome completo e data de nascimento, segundo o relatório final, para “garantir a identificação inequívoca do usuário”. As medidas também são questionadas pelas entidades que apontam o risco de “fragilização da proteção de dados de todos os usuários das redes sociais”.

Educação contra a desinformação

Outro problema identificado pela professora é a falta de uma educação voltada para a mídia, que dê condições, por exemplo, para que a população possa buscar outras informações, checar e comparar abordagens distintas sobre um mesmo tema ou a mensagem que recebe.

“Numa sociedade que tem esse déficit em relação à educação midiática e mesmo no acesso ao direito à comunicação, é muito problemático que a gente coloque de uma maneira genérica (na legislação) e acabe também apontando para essa punição. O que outros países fazem é apostar muito mais na lógica de promoção da educação para a mídia. Há investimentos em campanhas públicas, na relação com escolas, tanto espaços formais e informais de educação para combater a desinformação. Criando o que eles chamam de resiliência da população em relação a estas campanhas desinformativas, em vez de seguir pelo rumo do punitivismo”, comenta Helena.

A votação do relatório deve ocorrer nesta terça-feira (26) e a expectativa dos especialistas é que sejam feitas alterações nas propostas de combate às fake news listadas no relatório da CPI da Covid. Para Helena, o relatório deve levar em conta as discussões no Congresso Nacional sobre o Projeto de Lei 2.630/2020. A proposta, garante, é a que tem um debate mais avançado na transparência da internet. 

“Houve dezenas de audiências públicas sobre esse PL. Então me parece muito problemático que o relatório desconsidere todo esse processo democrático de elaboração, discussão e refinamento das propostas para combater a desinformação e proponha algo simplesmente a partir dos estudos da própria Comissão Parlamentar de Inquérito que, nós sabemos, teve que se debruçar sobre muitos outros temas”, conclui a professora.

Confira a entrevista

Redação: Clara Assunção