Fome de quê?

Temos de discutir a realidade do país, e não a agenda de Bolsonaro, diz sociólogo

Ao trazer fuzil ao lugar do feijão, presidente foge da perda de renda. “Temos que olhar menos para ele, mais para a realidade”, diz Cândido Grzybowski

Tomaz Silva/Agência Brasil
Tomaz Silva/Agência Brasil
Por que, no país, a violência nas favelas opõe pessoas que têm a mesma origem social?

São Paulo – As falas de Jair Bolsonaro, aparentemente insanas e absurdas, como as desta sexta-feira (27), escondem debates estruturais que a sociedade brasileira deveria ter como prioridade. “Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será escravizado. Eu sei que custa caro. Aí tem um idiota: ‘Ah, tem que comprar é feijão’. Cara, se você não quer comprar fuzil, não enche o saco de quem quer comprar”, disse o chefe de governo de um dos mais importantes países do mundo, a apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada. A agenda de Bolsonaro de hoje também repetiu ataque ao Tribunal Superior eleitoral, afirmando que “o câncer já foi lá para o TSE”. Em tom de ameaça, continuou: “Tem que botar um ponto final nisso”.

Ambas as falas são repetições incessantes da conjuntura política brasileira desde que o atual mandatário tomou posse em janeiro de 2019: ataques a pessoas, instituições, provocações gratuitas e ameaças à democracia. Para o sociólogo Cândido Grzybowski – presidente do Conselho Curador do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase) –, tanto a mídia de modo geral, como analistas e setores progressistas da sociedade, deveriam se concentrar em agendas que discutam o país estruturalmente.

“A estratégia dele é ocupar um vazio de discussão. A mídia discute muito o que é pautado por Bolsonaro. Nos toma tempo e deixamos de fazer outros debates. Não discutirmos outras agendas que não sejam as que Bolsonaro pauta é o mais grave na atual conjuntura”, diz Grzybowski. Para ele, um exemplo é o permanente debate sobre as Forças Armadas e sua disposição ou não para participar de um golpe, sempre sugerido nas falas do presidente.

Ou enfrentamos os problemas ou não avançamos

“Vemos muito poucas análises sobre as milícias e as Polícias Militares. Estes são os maiores problemas, e não as Forças Armadas. Claro que este é um problema complementar. Mas Bolsonaro não se apoia tanto nas Forças Armadas, se apoia em milicianos e PMs, que aliás são base dos milicianos também”, analisa. Este problema é estrutural e profundo. Remete à incapacidade do país de punir os militares responsáveis por torturas e mortes no regime militar. “Ou enfrentamos nossos problemas, ou não vamos avançar. Por exemplo, somos o único país na América Latina que não condenou militares.”


A permanente discussão da pauta colocada por Bolsonaro quase cotidianamente impede também, por exemplo, de aprofundar o debate sobre o racismo entranhado na sociedade brasileira, intimamente ligado à violência nas favelas – onde matar pessoas pelas polícias é cotidiano. E ambos os temas estão claramente relacionados às milícias e polícias militares estaduais, “público” ao qual Bolsonaro dirige seu discurso por armamento. Além da alta sociedade, que anda de carros blindados, e da parcela mais ignorante da classe média.

Por outro lado, considerando que no país não há segurança pública como direito, mas sim privilégio, no meio popular muitas pessoas concordam com tais falas do “chefe da nação”, já que não confiam na polícia e nas instituições. “E quem mais sofre com as milícias? O povão. Mas quem é a milícia? De certa maneira, o povão, ao mesmo tempo. Uma parte importante dos milicianos é formada por PMs em folga”, lembra o sociólogo.

PM, milícia, capitão do mato e agenda Bolsonaro

E essa realidade remete ao “capitão do mato” que, no passado, era responsável por capturar o escravo fugido. “Nossa polícia tem essa origem, em parte, no ‘mestiço’ – como se dizia na época –, que seguia o patrão. Essa cultura marca a origem das nossas instituições de segurança pública. Por que os negros da PM matam negros na favela, assumindo o racismo, e são tão seletivos ao matar?”, questiona Grzybowski. Na opinião do sociológo, esse debate em particular, de certa maneira vem sendo trazido dos Estados Unidos, onde se tornou uma pauta central nos últimos anos.

E para que serve o fuzil defendido por Bolsonaro? O que isso diz para quem precisa da comida do dia a dia? O que tem a ver com o cidadão desempregado, com medo da violência e da pandemia? Para quê todo mundo armado? De quem Bolsonaro quer se defender ao pregar a disseminação de armamento pesado?

“Bolsonaro é bem ‘à la Trump’: cria, pauta e impõe a agenda. Mas temos que olhar menos para Bolsonaro e mais para a realidade. Temos sim, que nos defender, mas principalmente precisamos olhar para além do que o inimigo nos oferece. Captar vozes  que não são ouvidas, demandas que não são sentidas”, defende Cândido Grzybowski. “Hoje, a institucionalidade é mais forte do que era, mas ainda é incapaz de expressar a complexidade da sociedade brasileira. Precisamos inverter o olhar e as agendas”, conclui.