Justiça

Tribunal aceita denúncia contra legista que forjou laudos de militantes mortos pela ditadura

Desembargadores ainda contestaram a afirmação de que a Lei de Anistia resultou de um “acordo social”

Paula Sacchetta
Paula Sacchetta
Movimentos fazem 'esculacho' em 2012 contra o médico: pelo resgate da memória

São Paulo – Crime de falsidade ideológica cometido por agente do Estado, durante a ditadura, não prescreve, segundo decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, em São Paulo. O TRF3 acolheu recurso do Ministério Público Federal (MPF) em denúncia contra o ex-médico legista Harry Shibata. Por “elaborar laudos necroscópicos falsos que esconderam sinais de tortura de dois militantes políticos assassinados pelos órgãos de repressão”.

A denúncia refere-se à morte dos militantes Manoel Lisboa de Moura e Emmanuel Bezerra dos Santos, “que foram presos ilegalmente e cruelmente torturados entre agosto e setembro de 1973”. A operação, segundo o MPF, teria tido a participação do delegado Sérgio Paranhos Fleury, entre outros. Por isso, em 2012, o Levante Popular da Juventude organizou um “esculacho” diante da casa do médico legista, na zona oeste de São Paulo.

Espancamento e tortura

“Embora os óbitos tenham sido causados por intensas sessões de espancamento e uso de instrumentos de tortura, informa a denúncia que o laudo assinado por Shibata, único ex-agente da ditadura que teve algum envolvimento nessas mortes, omitiu marcas evidentes nos corpos das vítimas e apenas endossou a versão oficial forjada na época, de que os militantes haviam sido mortos após troca de tiros com agentes das forças de segurança”, aponta o TRF3. Na primeira instância (5ª Vara Federal Criminal de São Paulo), a denúncia havia sido arquivada, sob entendimento de que o crime estaria prescrito. O MPF recorreu, e o processo volta agora à primeira instância para tramitar.

A decisão, da 11ª Turma, foi por maioria. O desembargador Paulo Fontes acompanhou o relator, Fausto de Sanctis, enquanto Nino Toldo foi voto vencido. Nno acórdão, o TRF3 faz considerações, inclusive, sobre a Lei de Anistia, aprovada em 1979, ainda durante a ditadura, ao lembrar do placar apertado daquela votação.

Anistia: argumento falacioso

“Desta forma, mostra-se falacioso o argumento propalado segundo o qual a Lei de Anistia teria sido um bem costurado “acordo social” manifestado pela sociedade da época no sentido de apaziguar os ânimos e permitir que o país caminhasse para uma abertura política tranquila”, afirma o acórdão. “Na realidade, referida Lei decorreu de uma diminuta margem de aprovação em um contexto em que os parlamentares envolvidos no processo legislativo não representavam efetivamente a sociedade brasileira na justa medida em que parcelas daqueles cargos estavam sendo ocupados por pessoas indicadas pelo próprio regime militar, razão pela qual não se pode concluir no sentido de que houve um debate social acerca da necessidade de aprovação de uma Lei de Anistia nem que a Lei em si é fruto da vontade soberanamente manifestada pelo povo brasileiro.”

A lei de 1979 tem sido usada pelo Judiciário como justificativa para negar pedidos de punição a agentes da ditadura. Uma exceção, recente, ocorreu com um delegado do Dops.

Já o MPF alega que, à luz do Direito internacional, crimes contra a humanidade não prescrevem. Segundo o Ministério Publico, “não há nenhuma dúvida de que o crime de “desaparecimento forçado” se enquadra dentre os crimes contra a humanidade reconhecidos pelo Direito Internacional”, ressaltando que tal conduta, em razão de sua complexidade, “envolve a prática de diversos outros delitos, inclusive o crime de falsidade ideológica”.

Versão falsa para as mortes

Manoel foi preso em agosto de 1973 em Recife, torturado ainda na capital pernambucana e transferido para o DOI-Codi paulista, para onde Emmanuel foi levado, no mesmo período. Os dois “foram alvejados com tiros para que as perfurações tornassem verossímil a versão forjada para as mortes”, diz a denúncia. “Os relatos oficiais, porém, contêm divergências que revelam sua falsidade.”

Assim, os corpos foram para o Instituto Médico Legal (IML) com pedidos de necropsia marcados com a letra T, usada para identificar “terroristas”. “No caso de Manoel e Emmanuel, Harry Shibata foi um dos responsáveis pelos relatórios que indicaram como causas das mortes apenas choque hemorrágico e hemorragia interna em virtude de ferimento por arma de fogo. Nada foi dito nos documentos sobre os hematomas, as amputações e as queimaduras.” Ambos foram enterrados como indigentes, no cemitério Campo Grande, em caixões lacrados. Seus corpos só foram encontrados e identificados em 1992.


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