Democracia

Militares na política: partidarização, participação ou ‘golpe na aparente normalidade’

Militares sempre estiveram presentes na vida política, mas alguns aspectos dessa atividade causam preocupação com a preservação da democracia

Isac Nóbrega/PR
Isac Nóbrega/PR
Passagem de liderança no Comando Militar do Sudeste, neste ano. Para pesquisador, presidente está enfraquecido, o que respinga nas Forças Armadas

São Paulo – A presença dos militares na política brasileira, assunto que voltou a inquietar o debate no atual governo, foi abordada com visões otimista e pessimista em debate realizado ontem (29) à noite pelo Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (Cedem-Unesp) e pela Editora Unesp. Os três pesquisadores lembraram que as Forças Armadas nunca deixaram de participar da vida política nacional, mas apontaram aspectos preocupantes dessa atividade.

O título de livro relançado neste ano pela editora, Militares e Militância: uma relação dialeticamente conflituosa, já é exemplo da complexidade do tema. Seu autor, o professor Paulo Ribeiro da Cunha, fala em “momento delicado” da história. “Os militares sempre estiveram envolvidos na política ou foram envolvidos na política. Reconhecer o direito de participar e ter voz política não é sinônimo de partidarizar as instituições, que é o grande perigo que estamos vendo hoje”, avalia.

O bom e o mau golpe

Apesar da preocupação, o docente não vê risco de golpe no país. Visão diferente, por exemplo, do tenente-coronel da reserva (PM de São Paulo) e pesquisador Adilson Paes de Souza. Para ele, o golpe “já está dado”. Ele cita o pensador francês Gabriel Naudé, autor, no século 17, do livro Considerações políticas sobre o golpe de Estado. “O mau é golpe aquele que é dado com canhão, e o bom golpe é aquele em que reina a aparente normalidade.” Esse golpe clássico, com tanques na rua, é démodé, segundo ele.

:: Dono da Precisa tenta driblar CPI da Covid. Randolfe ameaça prisão ::

Para o pesquisador, instituições estão “capturadas” por setores instrumentalizados e as Forças Armadas foram cooptadas pelo governo. Exemplo disso, citou, foi o episódio envolvendo o ex-ministro e general Eduardo Pazuello, que participou de ato político e não sofreu punição. “Eu tinha certeza de que Pazuello seria punido, nem que fosse uma repreensão.” Para o tenente-coronel, o país paga o preço de não ter feito uma política adequada de transição da ditadura para a democracia.

Papel dos partidos

O cientista político Eduardo Heleno de Jesus Santos, professor da Universidade Federal Fluminense (UFF), ressaltou o papel dos partidos e sua “função de moderação” em uma democracia. “E o que a gente vê ao longo da década de 2010 é uma erosão do sistema de partidos, da imagem dos partidos, que são essenciais.” Ele lembrou ainda que poucas legendas se preocupam com temas como o da defesa. “Se os partidos políticos não se interessam pelas Forças Armadas, com quem os militares podem contar para a representação política?” Nisso, acrescentou, pode estar uma “semente” da ascensão de alguém como Jair Bolsonaro.

O docente aponta outra questão, relacionada aos ethos militar (baseado em hierarquia e disciplina) e civil (marcado por disputa de forças, de posições). Dessa forma, questiona, como conciliar esses setores no ambiente democrático? Para ele, ainda é preciso criar uma cultura democrática, deixando para trás os tempos do golpe de 1964, que parecem ter voltado no debate público.

Grande para pensar pequeno

“Nesse sentido, o discurso anticomunista não tem mais razão de existir há muito tempo”, afirma o professor da UFF. “(É) um desserviço à nossa república. A gente não vive mais na Guerra Fria, os tempos são outros”, acrescentou, dizendo ainda que esse tipo de pensamento isola o país no sistema internacional. “O Brasil é grande demais para pensar pequeno.”

Santos observou também que as Forças Armadas são instrumentos de Estado, não de grupos políticos. Assim, quando o atual presidente da República usa expressões como “meu Exército”, “está negando a essência das Forças Armadas, que é servir ao Estado”.

O professor Cunha acredita que a tendência, neste momento, é de o governo chegar ao final enfraquecido. Isso também respinga nos militares. Para ele, o episódio Pazuello contribuiu para acabar com a “aura” de estatuto moral que os militares reivindicam, de ser melhores gestores. Quase ao final do debate, o pesquisador disse acreditar que, com as recentes mudanças ministeriais, é possível que os militares passem a perder cada vez mais espaço para os políticos do chamado Centrão.

Intervenção na segurança

Outro debate ocorrido ontem abordou o lançamento do livro Dano colateral – A intervenção dos militares na segurança pública (Objetiva), da jornalista Natalia Viana, editora executiva da Agência Pública, de jornalismo investigativo. Segundo os organizadores, a obra traz “uma ‘pré-história’ do avanço dos militares na política por meio da atuação deles em diferentes operações de segurança pública na última década”.

Assim, um exemplo citado, entre outros, é o episódio ocorrido em abril de 2019 no Rio de Janeiro, quando militares do Exército dispararam mais de 80 tiros contra o músico Evaldo Rosa e sua família. Um catador de material reciclável, Luciano Macedo, que tentou ajudar Evaldo, também morreu.


Leia também


Últimas notícias