Transição incompleta

Em vez de acatar sentenças, Estado brasileiro adotou ‘revisionismo histórico’ e negacionismo sobre a ditadura

Com críticas de familiares das vítimas, Corte Interamericana analisa se o país cumpriu sentenças nos casos Araguaia e Herzog. Comissão aponta vários retrocessos

Reprodução/Montagem RBA
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Brasil foi condenado em 2010 pelo caso Araguaia e em 2018 por Herzog, mas investigação e punição deixam a desejar

São Paulo – O Estado brasileiro não só “desacatou” sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) relativas à ditadura, como passou a adotar um discurso de “revisionismo histórico” e negacionismo em relação ao tema. As afirmações foram feitas por vítimas e seus representantes, durante audiência pública convocada pela Corte nesta quinta-feira (24).

A audiência foi convocada para avaliar se o Estado brasileiro adotou medidas em relação às resoluções da Corte em dois casos, a respeito da responsabilização dos crimes, localização dos desaparecidos políticos e divulgação de informações sobre o período ditatorial. O Brasil foi condenado em 2010 no caso Araguaia (1972-1975) e em 2018, no caso Vladimir Herzog (jornalista assassinado em 1975).

Transição democrática incompleta

“A ausência de um processo de transição democrática que considerasse elementos de justiça, verdade e memória produz consequências até a atualidade”, afirmou Beatriz Galli, diretora no Brasil do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil). “Essa herança da ditadura implica um desacato das decisões da Corte Interamericana nos casos Araguaia e Herzog.”

Além disso, acrescentou a ativista, produz “consequências perversas que perduram no tempo”. Beatriz afirmou ainda que essa situação piorou no atual governo de Jair Bolsonaro, com o desmonte das políticas públicas de direitos humanos. “Adicione-se a isso um discurso de revisionismo e negacionismo histórico, e um processo de militarização do Estado”, apontou. Ações e omissões que se perpetuam e se tornam obstáculos para o cumprimento da justiça.

Lei da Anistia: subterfúgio

A advogada Helena Rocha destacou ainda uma recorrente “interpretação inconvencional” da Lei da Anistia, aprovada em 1979, ainda durante a ditadura, como outro obstáculo, sendo usada como “subterfúgio” para o arquivamento de ações. O que configura, emendou, “total desacato à autoridade dessa Corte”.

Liderada pelo embaixador do Brasil na Costa Rica (onde fica a sede da Corte Interamericana), Antonio Francisco da Costa e Silva Neto, a bancada governamental incluiu representantes da Advocacia-Geral da União, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e do Ministério da Defesa. O embaixador falou em “compromisso firme e inarredável com o sistema de direitos humanos” e com o processo em discussão.

Governo fala em “esforços”

Os representantes do governo – cujo atual presidente se referiu de forma depreciativa, quando deputado, à busca por ossadas no Araguaia – reafirmam, com variações, que todos os esforços têm sido feitos para cumprir as sentenças. Referiram-se as denúncias apresentadas pelo Ministério Público Federal contra agentes da ditadura, expedições à região da guerrilha e medidas legislativas, por exemplo, para tipificar o crime de desaparecimento forçado.

Segundo o chefe da Assessoria Especial de Assuntos Internacionais do Ministério da Mulher, Milton Toledo, apesar de o Estado brasileiro reconhecer o direito dos familiares de saber o paradeiro dos desaparecidos, a Corte deve reconhecer que foram “empreendidos de forma exaustiva” recursos técnicos, financeiros e humanos com esse objetivo. Mas, na ausência de “novos indícios, a probabilidade de alguma descoberta “é próxima de zero”. Assim, as ações só seriam retomadas com novas evidências.

Direitos humanos nas Forças

O governo também escalou um militar, o general Paulo Viana, para a audiência. Representante do Ministério da Defesa, ele afirmou que o Estado vem capacitando membros das Forças Armadas sobre questões de direitos humanos. Isso para garantir, explicou, a “não repetição dos fatos citados”. Além disso, emendou, o Estado reconhece “o dever de atuar em congruência com os princípios internacionais”.

Ivo Herzog na sessão de hoje: legado autoritário se reflete em políticas, práticas e instituições, mantendo mensagem de violência do Estado (Reprodução)

Helena Rocha observou que, se por um lado de fato houve nove denúncias sobre o caso Araguaia, em nenhuma houve decisão de mérito, e o mesmo aconteceu em relação a Herzog. “Os presentes casos fazem parte de um padrão de impunidade em relação aos crimes ocorridos durante a ditadura”, afirmou. “É urgente uma interpretação da Lei de Anistia em conformidade com a Corte Interamericana”, acrescentou.

Denúncias do MPF

Também em 2010, o Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou a validade da lei de 1979, mas há recursos pendentes até hoje. E o MPF já apresentou dezenas de denúncias contra agentes do Estado, que normalmente esbarram na questão da anistia. Recentemente, houve uma inédita condenação de um desses agentes, em decisão de primeira instância.

Em seguida, falaram Crimeia de Almeida, Victoria Grabois e Ivo Herzog, pelos familiares das vítimas. Victoria, por exemplo, lembrou que o atual governo, além de não investigar, já recebeu um dos principais denunciados em pleno Palácio do Planalto. Além disso, o Ministério da Defesa insiste em não divulgar documentos, alegando que foram destruídos. “O próprio Estado obstaculiza o acesso à informação.” Filho de Vladimir Herzog, e diretor do instituto que leva o nome do jornalista, Ivo apontou a permanência de um legado autoritário, que se reflete em políticas, práticas e instituições, mantendo uma mensagem de violência por parte do Estado.

Comissão aponta retrocessos

Pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), a secretária-executiva adjunta Marisol Blanchard fez relato em que apontou retrocessos no que se refere à Justiça de Transição e aos esforços pela recuperação da memória. Citou, por exemplo, mudanças recentes na Comissão de Anistia e na Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos.

Ela fez referência ainda “a repetidas manifestações de autoridades e instituições públicas” que de alguma maneira justificam as violações de direitos humanos. Segundo a representante da Comissão, “causa preocupação” que o Brasil, por exemplo, suspenda exames forenses e não dê continuidade a atividades do Grupo de Trabalho Araguaia, responsável por busca e identificação de restos mortais.

Cultura da impunidade

A secretária-executiva fez recomendação para que os esforços de apuração sejam “reforçados com os recursos financeiros e logísticos necessários”, apontou descumprimento sobre acesso a documentos militares e citou a presença de certa “cultura da impunidade” no Brasil, como parte de um legado autoritário “que continua presente com regras, procedimentos e práticas que sobreviveram à transição democrática”. Isso influi na “qualidade” da democracia, observou.

Além disso, o Estado brasileiro se mantém em desacato em relação às decisões da Corte, não ratificou a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade (adotada pela s Nações Unidas em 1968) “e tampouco tipificou o crime de desaparecimento forçado, como ordenado pela Corte”.

Para a presidenta da Corte Interamericana, Elizabeth Ondino, em alguns casos há de fato dificuldade de cumprimento de certas medidas, mas o Estado deveria “comunicar-se e trabalhar” com os familiares dos desaparecidos da ditadura. Ela pediu que o governo brasileiro preste informações sobre as “negligências” apontadas pelas vítimas pela própria Comissão. “É muito preocupante a intervenção do Exército nos trabalhos de busca”, comentou, citando um dos pontos relatados por Marisol Blanchard. Ressaltou esforços feitos até agora, mas pediu, muy calidamente, que esses esforços “dupliquem, tripliquem ou centupliquem”.


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