Estratégia perigosa

‘A mentira e a desconexão com a realidade têm sido a estratégia do bolsonarismo’, diz cientista política

Acuado por denúncias e pela ascensão de Lula nas pesquisas, Bolsonaro dobra a aposta na dissonância cognitiva com os seguidores mais radicais. O que repercute em ataques à democracia e à liberdade de imprensa, avalia Mayra Goulart

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"É uma aposta no descolamento completo da realidade. Isso não é maluco, é bem feito. Porque esses segmentos estão dispostos a abrir mão de qualquer informação recebida de fora", afirma Mayra Goulart

São Paulo – A “motociata” deste domingo (23) do presidente Jair Bolsonaro, no Rio de Janeiro, é uma tentativa de demonstração de força de alguém que está cada vez mais acuado, à frente de um governo marcado por denúncias de omissão na condução da pandemia com uma economia frágil. Diante desses fatos, Bolsonaro reafirma sua aposta nos segmentos mais fiéis e radicais, que estão dispostos a ignorar o mundo e acreditar no que defende o líder.  

A avaliação é da professora de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Janeiro (UFRJ), Mayra Goulart, coordenadora do Laboratório de Partidos, Eleições e Política Comparada. Em entrevista a Glauco Faria, no Jornal Brasil Atual, ela aponta que Bolsonaro tem agido de forma cada vez mais agressiva em seus gestos políticos. No seu passeio de moto neste domingo, o presidente provocou aglomeração na capital fluminense, apesar dos decretos da prefeitura e do governo estadual que impedem atos do tipo na cidade cuja taxa de ocupação dos leitos de UTI está acima de 95%.

Lula e FHC

De acordo com a cientista política, o endosso a esse tipo de manifestação também revela a preocupação de Bolsonaro com a ascensão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Há semanas, Lula vem liderando pesquisas de intenção de voto para 2022. Dois dias antes da “motociata”, a divulgação do encontro entre ele e o também ex-presidente Fernando Henrique Cardoso chamou atenção do mundo político. Os perfis do petista divulgaram uma foto dos dois, com um texto que descrevia um “almoço com muita democracia no cardápio”. O encontro ocorreu em 12 de maio, mas só houve a revelação na sexta (21). Em entrevistas, o próprio FHC vem afirmando que, num eventual segundo turno entre Lula e Bolsonaro, votará no ex-presidente.

Uma aproximação que pode simbolizar uma espécie de mea culpa, de acordo com Mayra, de uma parcela de atores políticos que chegaram a apoiar o bolsonarismo, em 2018, mas que agora está “arrependida vendo o genocídio que está acontecendo em virtude da covid-19”, como descreve. “Há uma certa desidratação do poder de Bolsonaro, reduzindo suas chances de se reeleger. O que faz com que alguns atores se afastem do bolsonarismo”, explica.

A mentira como estratégia

Nesse realinhamento de forças em meio ao aumento da insatisfação com seu governo, Bolsonaro usa a “a mentira e a desconexão com a realidade, como uma estratégia deliberada”. “É uma aposta no descolamento completo da realidade. Isso não é maluco, é bem feito. Porque esses segmentos estão dispostos a abrir mão de qualquer informação recebida de fora e acreditar só naquilo que vem do círculo, do seu líder e dos seus seguidores”, afirma Mayra na Rádio Brasil Atual

“É impressionante, porque as pessoas gritavam odes ao ‘fim da corrupção’, ‘acabou a roubalheira’, um discurso completamente desconectado com a realidade. E quando alguém estava ali e gritava ‘cadê a vacina?’, ou ‘genocida’, os outros ignoravam e falavam assim, ‘ah, a roubalheira’, ‘o PT roubou'”, descreve ela, que presenciou a manifestação. “Essa é uma estratégia do governo. Tanto que a frase do (general) Eduardo Pazuello, quando ele diz, isso é ‘coisa de internet’ (na CPI da Covid no Senado), é muito significativa. Está desacreditando as informações que o sujeito é capaz de obter sozinho, via mídia, veículos de informação, e dizendo ‘acredita só em mim, no que eu estou te falando’, ‘não acredite em nada do que você está ouvindo, está tudo ótimo, o governo fez o que podia’.”

Democracia em risco

Mayra também cita como exemplo da estratégia a entrevista do senador Ciro Nogueira (PP-PI), divulgada ontem. Em um balanço dos trabalhos da comissão ao O Globo, o parlamentar declarou que a CPI da Covid “trouxe fatos favoráveis ao governo”. O aliado de Bolsonaro afirmou ainda que mesmo a exposição dos 10 e-mails de compra de imunizantes da Pfizer, ignorados pelo governo, “não afetou em nada a compra de vacinas”.

A adoção desse tipo de postura repercute entre os governistas que estão na CPI da Covid, além de resultar em atos antidemocráticos, como o ataque dos bolsonaristas aos profissionais de imprensa. O repórter Pedro Durán, da CNN Brasil, precisou sair escoltado pela polícia do ato, cercado por manifestantes que gritavam “CNN lixo”. A hostilização foi gravada e divulgada nas redes sociais e o jornalista foi novamente assediado. Um dos divulgadores foi o vereador bolsonarista de Niterói Douglas Gomes (PTC). 

“Certamente, é preocupante demais para democracia (essa estratégia). Tanto que o Bolsonaro, quando acabou a manifestação de ontem, foi falar com os seguidores e investiu contra o sistema institucional, falando sobre voto impresso. Esse clamor pelo voto impresso é uma justificativa prévia para contestar o resultado das eleições”, destaca a cientista política da UFRJ.

As raízes do autoritarismo em 2014

Mayra conclui, contudo, que o atual momento de “erosão das instituições brasileira” tem origem quando as lideranças do PSDB, após a eleição de 2014, questionaram o resultado que garantiu a presidência a Dilma Rousseff (PT). “Uma coisa que nunca tinha acontecido na Nova República”, destaca. Ali, lembra ela, a mídia comercial ajudou a criar “um balão de ensaio de uma crise econômica e social que não existiam, em que o PT ‘quebrou’ o país”. Esse “caldo cultural’, afirma a professora, fomentou o bolsonarismo de hoje. 

“Questionar o resultado da eleição, o funcionamento das instituições democráticas, é uma via cujo resultado só pode ser o autoritarismo”, adverte. 

Confira a entrevista 

Redação: Clara Assunção


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