Desencontros e reencontros

FHC, Lula, a formação do PT e o ‘partido dos assalariados’

Ex-presidente Fernando Henrique comenta divergências no período de abertura e diz que atualmente há “desatenção” com a democracia

Marcello Casal Jr./Agência Brasi
Marcello Casal Jr./Agência Brasi
Lula recebe a faixa presidencial de FHC, em 2003 (à esquerda, Marisa Letícia e atrás, o vice José Alencar): alternância no poder

São Paulo – Os caminhos e descaminhos da redemocratização brasileira dominaram o debate, nesta terça (25), entre o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, a cientista política e social Maria Hermínia Tavares e o sociólogo e escritor José de Souza Martins. Um dos temas do encontro foi a divergência que levou FHC e o também ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva a rumos partidários diferentes entre o final dos anos 1970 e o início dos 1980. Recentemente, os dois tiveram encontro em que discutiram a situação do país.

No período conhecido como de “abertura política”, mas ainda sob a vigilância da ditadura, começou a se esboçar uma nova configuração partidária no país. Até então, apenas duas legendas eram permitidas: Arena (governo) e MDB (oposição), mas a volta dos exilados a partir de 1979 e a rearticulação dos movimentos sociais estimularam o debate. FHC era um dos líderes do MDB, enquanto Lula despontava na região do ABC paulista por sua atuação sindical.

Trabalhadores ou assalariados?

“Eu era senador suplente, tinha mais ligação com o mundo institucional da política, que via com maus olhos essa coisa de sindicato. Lula entendeu que era factível (um partido vinculado ao operariado) e eu queria um partido que fosse mais palatável para os políticos”, comentou Fernando Henrique. Segundo ele, sua intenção era formar um “partido dos assalariados”, incluindo a classe média, e não dos trabalhadores, no sentido sindical.

O tucano lembra ter conhecido Lula quando o sociólogo Chico de Oliveira levou o metalúrgico para um debate sobre formação da classe operária. Posteriormente, ele organizou um encontro, em sua casa, entre Lula e o deputado Ulysses Guimarães – que também fazia distinção entre atividade partidária e sindical. FHC conta ter “apanhado” da economista Maria da Conceição Tavares, que defendia mais proximidade com os sindicalistas.

Expressão própria na política

Aos poucos, Lula concluiu que era necessário criar uma legenda a partir dos próprios trabalhadores, para defender seus interesses na política. Era uma busca de “expressão própria”, como definiu Maria Hermínia, que, naquele momento, como acadêmica, passou a acompanhar e estudar o fenômeno que se batizou de “novo sindicalismo“, na região do ABC.

Lula elegeu-se presidente do Sindicato dos Metalúrgicos (na época, de São Bernardo e Diadema) em 1975 e iniciou uma mudança no perfil da entidade, que até então – segundo se falou no debate de hoje – praticava um “sindicalismo mais apolítico”. A pesquisadora foi para lá a convite do cientista político Francisco Weffort. Tempos depois, a criação do PT, em 1980, atraiu alguns integrantes da chamada “ala progressista” do MDB (que viraria PMDB), entre eles o próprio Weffort. Em 1988, boa parcela de peemedebistas criou o PSDB.

Sem reação ao golpe de 1964

Professora aposentada da Universidade de São Paulo (USP), Maria Hermínia dedicou boa parte de sua vida acadêmica ao estudo do sindicalismo. Ela também tentava entender a falta de reação ao golpe de 1964. “Para mim foi um choque. Eu não imaginava que pudesse acontecer. Embora todas as evidências estavam dadas, se imaginava que o campo nacionalista progressista tivesse muito mais capacidade de se contrapor”, lembra. À pesquisadora interessava ainda entender o pensamento daquele grupo econômico (trabalhadores) que, segundo sua visão, procurava construir uma alternativa ao capitalismo mais ortodoxo.

Fernando Henrique, Sérgio (mediador), Martins e Maria Hermínia: caminhos e descaminhos antes, durante e depois da redemocratização (Assista)

Também professor aposentado, Martins enfatizou o peso da Igreja Católica na organização operária e, mais adiante, do próprio PT. Mas, antes disso, fez críticas a alguns dos pensamentos correntes na época, como a da possibilidade de “aliança” entre trabalhadores e empresários nacionalistas.

Processo histórico

“Havia uma compreensão um pouco ingênua desse processo sobre quem era quem nessa história”, diz (…) “A sociologia precisa dialogar mais com as culturas indígenas para entender o Brasil. O proletariado fala Nheengatu (língua da família tupi-guarani) então não dá para fazer aliança com a burguesia.”

Para Maria Hermínia, a geração à qual pertencem FHC e Lula fez parte de uma “aventura” – intelectual, política e existencial. “No final dos anos 70, estávamos todos no mesmo palanque (pelo restabelecimento da democracia). O que se construiu de bom foi pelas forças que estavam lá.”

Perigos à democracia

Ela manifestou preocupação com o momento atual, assim como o ex-presidente. Para Fernando Henrique, a democracia, “planta tenra, está mal regada”. “Existe uma desatenção à democracia. Há tempo ainda de refazer o caminho mais aberto”, afirmou. Para ele, o consenso inclui “menos desigualdade e mais liberdade”.

O debate de hoje faz parte de uma série para comemorar os 90 anos de FHC, no mês que vem.


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