Disputa pelo imaginário

Em meio ao caos pandêmico, comemoração do golpe tem mais de uma face, diz Rubens Casara

Juiz e doutor em Direito considera reverências ao 31 de Março como parte de uma disputa pelo imaginário dos fatos históricos e, no campo prático, uma forma de tirar o foco da tragédia sanitária

Edilson Rodrigues/Agência Senado
Edilson Rodrigues/Agência Senado

São Paulo – A comemoração do golpe de 31 de março de 1964, data que marca o início de duas décadas de ditadura no Brasil, tem mais de uma face, segundo pensa Rubens Casara, juiz mestre em ciências penais, doutor em Direito e autor de diversos livros, entre os quais Bolsonaro: o mito e o sintoma. Ele foi o convidado do programa Live do Conde, da TVT, nesta quarta (31).

“Me parece que essa comemoração tem múltiplas faces. Reforça o imaginário autoritário, essa tentativa de reescrever a história, bem como desloca a atenção, ou diminui a pressão sobre a quantidade de mortos diária produzida por essa gestão catastrófica da crise pandêmica”, resume.

Sobre o imaginário, ele entende que há uma disputa em jogo. “Qual a imagem que vamos ter desse fenômeno horrível de 64, em relação ao qual o atual governo se apresenta como uma espécie de sucessor?”, questiona. “Tem um componente simbólico muito forte. Se a gente pensar que a realidade é uma trama que envolve simbólico, linguagem, limites e o imaginário. Nós podemos ver essa tentativa de comemorar o golpe como uma tentativa de influenciar nesse simbólico, bem como na disputa do imaginário.”

Mudar de assunto

Além do embate, Casara explica que a comemoração do golpe em torno do 31 de março, promovida pela extrema direita, visa a mudar o foco das atenções do debate público. “Enquanto nós estamos aqui gritando contra essa comemoração, muitas vezes estamos deixando de prestar atenção na tragédia de nosso cotidiano gerada por essa necropolítica, por esse ‘deixar morrer’.”

Onte, pelo segundo dia consecutivo, o Brasil registrou recorde de mortes pela covid-19. Foram 3.869 vítimas em 24 horas. Com isso, o país foi a 321.515 vidas perdidas para o vírus desde março do ano passado. Por outro, lado a vacinação anda a passos de tartaruga, com menos de 3% da população totalmente imunizada.

Autoanistia e crise militar

Outro ponto debatido foi a Lei da Anistia. “Quem estuda a sério o tema da anistia, sabe que a autoanistia é um engodo. Eu, que pratiquei crimes, não posso dar uma anistia aos crimes que pratiquei”, diz. “Os tribunais internacionais já declararam que ela não pode existir, sob pena de você legitimar, a priori, os criminosos para amanhã reconhecer que não pode punir um fato que eu mesmo, criminoso, pratiquei”, explica.

Casara ainda teve tempo para falar um pouco sobre a inédita troca de comando das Forças Armadas, após a demissão do ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva. Sobre o tema, preferiu não se aprofundar.

“Nós não temos ainda elementos para produzir uma análise séria a respeito desses últimos acontecimentos”, disse o juiz. “Mas me parece simplista imaginar que em um passe de mágica, o Exército brasileiro legalista resolveu abandonar o governo em meio a uma tentativa de golpe. Pode até ser que essa hipótese seja verdadeira, mas nenhum elemento concreto permite afirmá-la neste momento. Poderia aqui chutar outras hipóteses”, diz.

“Uma coisa que me parece evidente é uma crise sem precedentes dentro das forças armadas, algo que a gente não vê nada parecido desde a época da ditadura”, concluiu.


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