Outro lado

Evangélicos comemoram restauração da justiça no caso Lula

Apesar do bolsonarismo ainda ser a maioria entre os religiosos, muitos furam a bolha, à despeito de suas lideranças, e veem nas reviravoltas dessa semana “a mão de Deus”

arquivo pessoal
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Maria Geralda, Letícia Coutinho e Levi Araújo: todos em defesa da definitiva inocentação de Lula

São Paulo – É fato que boa parcela dos evangélicos apoia o governo Bolsonaro, mas há os que furam a bolha e mantêm admiração pelo ex-presidente Lula. Mulher e negra, Maria Geralda Reis de Azevedo passou os últimos dias atenta ao noticiário sobre o caso da anulação das condenações do ex-presidente. Aos 72 anos, nascida em Itabira, “a terra de Carlos Drummond”, como gosta de lembrar, ela foi morar ainda jovem em Ribeirão das Neves (cidade onde nasceu Henfil), na região metropolitana de Belo Horizonte (MG). Criou três filhas com extrema dificuldade e sem a ajuda do pai. Fez faxinas, deixou de comer para levar o lanche para suas meninas, esfregou chão em apartamentos chiques da zona sul e trabalhou como terceirizada na Universidade Federal de Minas Gerais, local por onde passaram políticos poderosos. “Eu vi muitos deles. O que eu não via mesmo era gente preta, como eu, estudando ou trabalhando lá. Parecia que era um lugar proibido pra nós”.

Isso, segundo ela, até o governo do presidente Lula. Foi durante o período do ex-presidente, que teve seus direitos políticos restabelecidos na última segunda-feira (8), após decisão do ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal, que ela viu suas filhas ingressarem na universidade e a vida melhorar de forma substancial. Foi por isso que Mariinha, como é conhecida na vizinhança, comemorou muito os últimos dias diante do noticiário. “Achei muito bom. Foi uma injustiça o que fizeram a ele. Eu peço que Deus dê força pra ele, porque se ele se candidatar, eu voto no Lula de novo”.

Sua história encontra eco em diversas outras pelo país. Mariinha, além de ter essa convicção, é também evangélica e membro de uma igreja neopentecostal, a Igreja da Graça, liderada por R. R. Soares, que tem apoiado o governo. “Lá todos votaram no Bolsonaro. Mas eu não. Eu sei que foi Lula quem olhou um pouco pra gente que é pobre”.

De acordo com a pesquisa do IPEC (Inteligência, Pesquisa e Consultoria), a popularidade do presidente Jair Bolsonaro vem despencando nos últimos meses e ele é ruim ou péssimo para 39% dos brasileiros. Porém, é entre eleitores evangélicos que tem se sustentado. Nesse recorte, 38% julgam seu governo como ótimo ou bom. Furar essa bolha tem sido um dos grandes desafios, como observou o jornalista Leandro Fortes, em entrevista ao ‘Bom para Todos’, da TVT, da última terça-feira (9). “As igrejas neopentecostais nas comunidades carentes e pobres vão começar a vender a imagem de dois demônios: um de direita e esquerda”, analisa, explicando que com o derretimento de Bolsonaro, a narrativa será para que um candidato de centro, “entre todas aspas”, consiga avançar nesse eleitorado. “É por isso que ação política de imediata tem que ser nessas comunidades”.

Um movimento que já começou, como observou o pastor batista e ativista dos direitos humanos Levi Araújo, da Igreja Caverna, no centro de São Paulo. “A decisão deflagrou movimentos de oração, jejum e vigílias recheadas de fake news, para expulsar todo ‘demônio’ que coloque em risco a reeleição do atual presidente. A maioria da liderança evangélica que apoia Bolsonaro é antilulopetista, morista e lavajatista, com não poucos negacionistas da ciência e da realidade e que desejam impor a sua pauta moral à sociedade brasileira, tentando acabar por decreto ou ao arrepio da lei com pecados e crimes suspeitos”. Segundo ele, consciente ou inconscientemente, com ou sem dolo, “esses irmãos não querem a verdade e nem lutam contra a corrupção com imparcialidade e isenção de ânimo”.

Levi comemorou a decisão de Fachin que para ele, apesar de chegar com grande atraso, é uma decisão correta que restabelece a verdade e a justiça. “Seja Lula ou Bolsonaro ou qualquer cidadão ou cidadã brasileira, todos têm o direito a um julgamento justo sem vícios e sem juízes e promotores suspeitos, que é exatamente o caso”.

Bolsonarismo quase hegemônico

Entendimento semelhante ao do advogado Filipe Gibran, membro da CEUC – Comunidade Evangélica da Unidade em Cristo, em Belo Horizonte (MG), em Cristo e pastor do movimento chamado Reino em Pessoa. “Recebi com alegria por uma questão de justiça. Como era esperado, por questão de inúmeros vícios processuais, o processo seria anulado a qualquer momento”, contou ele, que agora espera que Moro seja julgado por suspeição. “Com a suspeição, o possível indiciamento dele a crime. Dele, dos procuradores e promotores. Por conluio ou talvez formação de quadrilha. No mínimo por essa vontade de obstruir a justiça e perseguir”. Gibran também teve que lidar com a reação de outros evangélicos, inclusive dentro da própria família. “Eles receberam isso como uma facada nas costas. Foram poucos colegas pastores que eu percebi felizes. O bolsonarismo, na minha opinião, ainda é quase hegemônico no ambiente evangélico. Poucos colegas estão pelo lado da Justiça e do Direito. Uma pena”.

Alheia à liderança de sua igreja, a Assembleia de Deus no bairro de São Mateus, zona leste da cidade, onde foi criada e frequenta, e também aos chiliques de pastores assembleianos como o empresário da mídia Silas Malafaia, a professora Leticia da Conceição Coutinho se disse “muito feliz e esperançosa” com os últimos desdobramentos. “É como uma luz que se acende no meio de tantas trevas. A restauração da justiça, como diz a Bíblia. É a mão de Deus”, explicou ela, que colocou uma canção evangélica no youtube para tocar e celebrar as boas notícias, “ainda que os dias sejam de muita tristeza com o número de mortes cada vez maior pela covid”.

Foi ao som de “O Escudo”, um clássico do grupo musical A Voz da Verdade, que ela “louvou a Deus pela esperança renovada” e lembrou de um tempo em que ser evangélico era ter empatia e amor pelos que sofrem. “É preciso ter consciência de classe. Somos trabalhadores. Precisamos lutar ao lado dos trabalhadores. E eu entendo que minha fé me leva à isso. A luta contra a injustiça”.

A letra da música que a professora tanto ama diz: “Já vi fogo e terremotos. Vento forte que passou. Já vivi tantos perigos, mas Tua voz me acalmou”. É da singeleza do coração de crentes que ainda ‘amam a Deus e seu próximo’ que, como diz outra canção, dessa vez de Chico Buarque, que nasce a oração: “E eu que não creio peço a Deus por minha gente. É gente humilde, que vontade de chorar”.