Prendo e arrebento

General Figueiredo simbolizou as contradições da ditadura em sua fase final

Livro aborda governo do último general-presidente, entre acenos à democracia e ameaças de retrocesso, como uma possível virada de mesa em 1984

Reprodução/Montagem RBA
Reprodução/Montagem RBA
Figueiredo e alguns de seus desafios ainda sob a ditadura: Riocentro, bomba na OAB, anistia

São Paulo – A historiografia da ditadura brasileira costuma se concentrar nas origens e no pós-AI-5, período em que a repressão e a violência se intensificaram. Ou em questões tópicas: DOI-Codi, Frei Tito, Panair, sequestro de crianças. Mas um livro recentemente lançado busca detalhar justamente o período final do regime autoritário, com foco na figura do último general-presidente: João Baptista de Oliveira Figueiredo, dos presidentes da ditadura o que mais tempo ficou no poder, 1979 a 1985. Aquele que pediu que o esquecessem, mas que alternava momentos de apego com outros em que parecia não mais suportar o cargo.

Este é justamente o mote de Me Esqueçam Figueiredo – A biografia de uma presidência (Record, 798 págs.), do advogado Bernardo Braga Pasqualette. O livro explora as contradições que não são apenas do presidente, mas do próprio momento político, entre acenos à democracia como constantes ameaças de retrocesso. Ele assumiu, por sinal, no ano (1979) em que não havia mais AI-5.

Sem “virar a mesa”

Estão ali, também, demonstrações do temperamento instável de Figueiredo, que saiu do comando Serviço Nacional de Informações (SNI) para a Presidência da República, indicado por Ernesto Geisel. Do governante que tentou “sair no braço” com manifestantes ao que conduziu, com idas e vindas, e muitas limitações, o processo de abertura política. A excepcional foto de capa, de Jair Cardoso, é precisa: mostra Figueiredo em primeiro plano, com os usuais óculos escuros, e um militar atrás, batendo continência, do qual só se vê o quepe e uma das mãos.

Entre os quase 70 depoimentos e entrevistas para o livro, um se destaca por trazer informação até então inédita de personagem do governo, o ex-ministro da Marinha Alfredo Karam. Em 6 de julho de 2019, aos 94 anos, ele confirmou a realização de uma reunião restrita, em 19 de setembro de 1984, na qual se cogitou uma “virada de mesa” no processo sucessório.

Quem falou?

Segundo seu relato, à página 595, participaram dessa reunião, além dele próprio e do presidente Figueiredo, os ministros Otávio Medeiros (SNI), Walter Pires (Exército), Délio Jardim de Matos (Aeronáutica), Rubem Ludwig (Casa Militar), Waldir de Vasconcelos (Estado-Maior das Forças Armadas). Karam confirma a frase (“Qualquer coisa, nós viramos a mesa”), mas nega que tenha sido de Pires, como se veiculou. Exclui outros dois nomes: o dele e o de Figueiredo. Mas não revela o autor. Apenas afirma que o presidente rejeitou a ideia na hora: “Virar a mesa, só comigo deposto ou morto”.

De janeiro a abril daquele ano (1984), o Brasil viveu a euforia das campanha pelo restabelecimento das eleições diretas para presidente da República, conhecida como Diretas Já, que só viriam mesmo em 1989. Derrotada a emenda, restou a articulação no colégio eleitoral, a eleição indireta. A oposição se definiu por Tancredo Neves, com apoio de parte dos governistas. Muitos, inclusive Figueiredo, não aceitavam o nome de Paulo Maluf como candidato à Presidência. Vários bandearam para a oposição, até mesmo o vice-presidente Aureliano Chaves.

Posse frustrada

O resto da história é bem conhecido. Tancredo ganhou com folga no colégio eleitoral, mas não chegou a assumir. Foi internado na véspera da posse – aguentou as dores até quando pôde, porque receava que os militares não aceitassem outro nome. Depois de uma controvérsia jurídica, bem explorada no livro, quem tomou posse foi o vice, José Sarney, até outro dia um dos principais nomes do regime. Tancredo morreu em 21 de abril.

Ressentido, Figueiredo rompeu uma tradição e não passou o cargo. Saiu por um canto discreto do Palácio do Planalto. Um episódio que, na visão do biógrafo, diminuiu o presidente do ponto de vista histórico. Ele inclui ao final do livro um discurso que seria lido na cerimônia de posse.

A “anistia possível”

Já a questão da anistia é considerada pelo autor como o “melhor momento” de Figueiredo na Presidência da República. A Lei 6.683 foi sancionada por ele em agosto de 1979. Não foi “ampla, geral e irrestrita”, longe disso. O biógrafo endossa a tese da “anistia possível” pela circunstância histórica. Poderia abordar os questionamentos que se seguiram até os dias de hoje, passando por um julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) em 2010. Por 7 a 2, a Corte foi contra a revisão da lei.

Por outro lado, um momento ruim, diz o autor, foi o episódio do atentado do Riocentro, em 30 de abril de 1981, no Rio de Janeiro. Na véspera do 1º de Maio, um show reunia vários artistas pela democracia. A linha-dura planejou um atentado a bomba, para responsabilizar a esquerda e travar o processo de abertura. Uma das bombas explodiu antes do tempo e matou o sargento Guilherme Pereira do Rosário. Ele estava em um Puma no estacionamento ao lado do capitão Wilson Dias Machado, que ficou gravemente ferido.

Não foram os “comunistas”

A princípio, Figueiredo comprou a tese de que o atentado era obra da oposição. “Até que enfim os comunistas fizeram uma bobagem”, comentou. As investigações e a cobertura da imprensa, contudo, passaram a apontar para um “serviço interno”. O inquérito deu em nada, mas o episódio desgastou o governo. A ponto de o guru Golbery do Couto e Silva, da Casa Civil, abandonar o navio.

“O ministro Golbery acreditava que o caso Riocentro era a chance que o governo tinha para uma ação mais enérgica em face daqueles que ainda se opunham à abertura política. (…) Faltou combinar com Figueiredo”, escreve Pasqualette. Até hoje, o episódio é objeto de apuração e denúncias.

Atentado à OAB

Mais um acontecimento que “testou” a política do governo foi o atentado à sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Rio de Janeiro, em 27 de agosto de 1980. Secretária da presidência, dona Lyda Monteiro da Silva, então com 59 anos, morreu ao abrir um envelope que continha uma bomba. Em 2015, a Comissão Estadual da Verdade do Rio apontou três nomes de militares envolvidos no episódio da carta-bomba. O autor do artefato teria sido Guilherme do Rosário, o mesmo do Riocentro.

Dividido em 22 capítulos, o livro traz ainda detalhes sobre a ruína financeira do país nos anos finais do regime, sempre com o onipresente Delfim Netto, as negociações com o Fundo Monetário Internacional, negociações nucleares, as relações com os Estados Unidos de Ronald Reagan e a fobia comunista nos estertores da União Soviética. Há um capítulo (16), inclusive, dedicado a frases de Figueiredo que entraram para o folclore político nacional – “Prendo e arrebento”, “tiro no coco” e muitas outras. Ele morreu às vésperas do Natal de 1999, aos 81 anos.


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