Asfixia

Rubens Paiva hoje: governo tirano e que ‘suja as mãos de sangue’

Para Ivo Herzog, foi ilusão acreditar em uma democracia segura a partir de 1985. “Dezenas de pessoas neste momento no Brasil estão sem ar para respirar e morrerão ao final da minha fala”

Reprodução/Montagem RBA
Reprodução/Montagem RBA
Em 20 de janeiro de 1971, Rubens Paiva foi levado de sua casa, no Rio, supostamente para prestar depoimento. Morreu sob tortura, e seu corpo nunca foi encontrado

São Paulo – Na manhã de 20 de janeiro de 1971, o ex-deputado pelo PTB Rubens Paiva, 41 anos, recebeu a visita de dois velhos amigos, Raul Ryff e Waldir Pires. Depois andou pela orla. Morava em frente à praia do Leblon, zona sul do Rio de Janeiro. Já estava no escritório de casa com a mulher, Eunice, quando seis agentes invadiram a residência, informaram ser da Aeronáutica e – sem qualquer ordem formal – comunicaram que vinham buscá-los para prestar depoimento. Rubens conseguiu acalmá-los e foi trocar de roupa para sair.

A continuação é conhecida. Depois de ser espancado na 3ª Zona Aérea, o ex-parlamentar foi levado para o DOI-Codi, na Tijuca, zona norte, e seguidamente torturado. Morreu em algum momento entre o meio da madrugada e o início da manhã. Seu corpo nunca foi encontrado. Os detalhes da história são narrados no livro Segredo de Estado, de Jason Tércio (Objetiva, 2010).

Ecos da ditadura

Na noite de ontem (20), os 50 anos do assassinato de Rubens Paiva foram lembrados em encontro virtual promovido pelo Núcleo de Preservação da Memória Política, Instituto Vladimir Herzog (IVH) e Comissão Arns de Direitos Humanos. Além das lembranças, quase todos ressaltaram as dificuldades dos tempos atuais e apontaram semelhanças com o período da ditadura.

Primeiro a falar, o historiador e cientista político Luiz Felipe de Alencastro, pela Comissão Arns, lembrou de um encontro com Paiva em 1966, em Paris, e identificou uma situação parecida agora. “A democracia brasileira está muito ameaçada. (Mas) a sociedade brasileira é forte, ela derrotou a ditadura e não se amedrontará diante dessas ameaças atuais”, afirmou.

Eunice, Clarice, Zuzu

Em seguida, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha destacou o papel de Eunice, que conheceu 10 anos depois da morte de Rubens. “Já era advogada e aquela mulher que se recusava a dar crédito às versões oficiais. Também se tornou advogada de causas indígenas. (…) Continuamos numa situação que tem muito em comum com o que se viveu aqui nos anos 70 e começo dos anos 80”, acrescentou, citando, além de Eunice, mulheres como Clarice Herzog, Zuzu Angel e as mães da Praça de Maio, na Argentina. “São aquelas que não esquecem e não deixam que se esqueça jamais.” Eunice morreu em 2018, aos 86 anos.

Diretor do IVH, Ivo Herzog disse considerar ilusório acreditar que a ditadura foi superada em 1985. “Infelizmente, acho que foi uma grande ilusão. Hoje, está na forma de mentiras, fake news. Um governo arbitrário, para não dizer tirano. Dezenas de pessoas neste momento no Brasil estão sem ar para respirar e morrerão ao final da minha fala. E o governo não está fazendo nada, não reconhece a tragédia que está acontecendo.”

Estado de exceção

Para Ivo, o país vive um “estado de exceção social”, contra o qual é preciso reagir. “É uma ilusão a gente achar que tinha conquistado uma democracia segura. O que nós temos hoje é o presidente da República cumprindo aquele desejo que manifestou anos atrás, que a ditadura deveria matar mais 30 mil pessoas, pelo menos.” Assim, ele cobrou ação do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Além de criticar o procurador-geral, Augusto Aras, que chegou a falar na possibilidade de decretação de “estado de defesa”: uma “ameaça documentada de golpe”.

Já o ex-deputado Adriano Diogo, que na Assembleia Legislativa de São Paulo presidiu a comissão da verdade que levou justamente o nome de Rubens Paiva, disse que a situação atual tem origem na “amnésia” politica do país. Que levou a um governo com “compromisso com a morte”. “Os democratas, a esquerda brasileira, não deram a devida importância para as coisas que aconteceram na ditadura”, afirmou, citando a Lei da Anistia, ratificada pelo STF, e a falta de punições a agentes da repressão.

Na mesma linha, José Luiz Baeta, do Comitê Popular de Santos por Verdade, Memória e Justiça, lembrou a importância política da cidade praiana. Paiva nasceu lá, em 1929. “Santos hoje é uma cidade que desconhece sua própria história.”

CPI antes do golpe

Adriano Diogo lembrou ainda que Paiva, depois do golpe, mesmo sem qualquer relação com a luta armada, “não parou de se relacionar com as pessoas no exílio, com as organizações de resistência, e por isso foi brutalmente assassinado”. Ele também destacou a atuação de Paiva, em 1963, na CPI do Ipes (Instituto de Pesquisas Econômicas e Sociais) e do Ibad (Instituto Brasileiro de Ação Democrática), entidades que deram sustentação ao golpe. Em vídeo de 2011 exibido pelo pesquisador Vladimir Sacchetta, o também ex-deputado Plínio de Arruda Sampaio chegou a comentar que aquela CPI “selou a morte dele”.

Neto de Rubens, Francisco Paiva disse que sua luta é evitar que surjam milhares de “Rubens Paivas”, “que sequer chegam a virar uma nota de rodapé no jornal”, referência à violência estatal. “O enfrentamento ao Bolsonaro talvez seja uma passagem de bastão da geração de vocês para a minha. Estamos prontos para receber esse bastão”, afirmou.

Governo militar

A última a falar foi Vera Paiva, filha mais velha de Rubens, com 17 anos à época (Rubens e Eunice tiveram cinco filhos). “A Comissão da Verdade permite dizer que ele não é um desaparecido, é um assassinado com o corpo desaparecido”, lembrou. Ela disse esperar que aqueles que afirmavam, sem viver a época, que “no tempo da ditadura era melhor”, vejam o que um governo repleto de militares está fazendo.

“Quando os militares saem da sua missão institucional e constitucional, é o que estamos assistindo hoje.” Segundo ela, é preciso “lembrar todos os dias que este é um governo militar, é violento, suja as mãos de sangue”.

Na semana passada, o Entre Vistas, apresentado por Juca Kfouri na TVT, trouxe o escritor Marcelo Rubens Paiva, que tinha 12 anos quando seu pai foi assassinado. Confira o programa aqui.