Direito à vida

Ataque a indígenas está entre crimes que podem dar em impeachment de Bolsonaro

Para jurista Eloy Terena, permissão à destruição de fauna e flora e à violação de direito dos indígenas à vida são crimes que justificam impeachment de Bolsonaro

Marcelo Camargo/ABR e Alex Pazuello/Semcom-Manaus
Marcelo Camargo/ABR e Alex Pazuello/Semcom-Manaus
Eloy Terena: “O fundamento mais profundo parece ser a negação dos direitos indígenas, sobretudo o direito à terra, à preservação do habitat próprio de cada Terra Indígena e do modo de vida tradicional.”

São Paulo – A situação dos brasileiros é ruim sob o governo Jair Bolsonaro. Desemprego em alta, economia em crise, descaso com a pandemia do novo coronavírus, recordes de mortes, falta de perspectiva. Mas para os cerca de 900 mil indígenas das 305 etnias do Brasil (Censo IBGE 2010) é ainda mais cruel. Desde a eleição de 2018, essas comunidades têm sido alvos de ataques a direitos, de invasões violentas de suas terras e de crimes que expõem esses povos ao genocídio. A demarcação de terras também foi interrompida – único meio de sobrevivência física e cultural para os indígenas.

Soma-se a essas ameaças o abandono do governo federal diante dos perigos da covid-19. De acordo com a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a taxa de mortalidade entre indígenas é o dobro da registrada para o resto da população brasileira. O site da instituição mantém dados atualizados sobre a incidência da covid-19 sobre os povos indígenas. Em 20 de janeiro, havia 46.190 casos confirmados, atingindo 161 povos e levando à morte 927 indígenas. E segundo estudo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), a taxa de 48% de mortes em pacientes indígenas internados pelo coronavírus é a maior do país. A mortalidade supera as populações parda (40%), negra (36%), amarela (34%) e branca (28%).

Essa situação levou a Apib a ingressar com uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (a ADPF 709) contra o governo Bolsonaro. A ação foi acolhida pelo Supremo Tribunal Federal em agosto de 2020. Assim, o STF determinou que o governo federal adote medidas de proteção aos povos indígenas durante a pandemia. O responsável pela foi o advogado Luiz Henrique Eloy Amado, da etnia Terena. Coordenador da Assessoria Jurídica da Apib, Terena é mais um jurista a defender o impeachment de Jair Bolsonaro.

Violações de Bolsonaro

Doutor pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e pós-doutor pela Escola de Autos Estudos em Ciências Sociais de Paris (EHESS), França, Terena afirma que 1.459 pessoas e organizações assinaram pedidos de impeachment do presidente Jair Bolsonaro até meados de agosto. As principais razões são as violações aos direitos humanos; violação de princípios de moralidade administrativa na condução da pandemia; participação em atos antidemocráticos pró-ditadura e em defesa do fechamento do STF. Também os prejuízos causados aos beneficiários do auxílio emergencial em virtude da restrição de parcelas; tentativa de golpe de Estado; atentado à soberania nacional; crimes contra o meio ambiente e os povos indígenas e tradicionais, dentre outros.

Os povos indígenas, ressalta ele, vivem em situação crítica sob Bolsonaro. “E à mercê das violações em demasia do atual presidente e seu governo, que vem negando atendimento aos indígenas que estão em áreas ainda não reconhecidas formalmente pelo governo (não homologadas).” De acordo com o IBGE, as localidades indígenas estão distribuídas em 827 municípios – desse total, 632 são terras oficialmente delimitadas. Há ainda 5.494 agrupamentos indígenas, 4.648 dentro de terras indígenas e 846 fora desses territórios. 

Bolsonaro e seus ministros não estariam respeitando a decisão do STF de proteger os indígenas durante a pandemia. Tampouco o cumprimento de um plano de enfrentamento à covid-19 junto a esses povos.

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Perseguição histórica a indígenas

Eloy Terena diz que o relatório de violência do Cimi, de 2020, registrou casos de racismo e discriminação étnico culturais. “As expressões de racismo manifestam-se por diversos meios, especialmente os virtuais, e alimentam hostilidades de populações das cidades, de vizinhos, de professores nas escolas oficiais”, descreve. “O fundamento mais profundo parece ser a negação dos direitos indígenas, sobretudo o direito à terra, à preservação do habitat próprio de cada Terra Indígena e do modo de vida tradicional.”

O jurista considera interessante notar que tanto para diversas autoridades quanto para ladrões de madeira e de outros recursos naturais as ideias são as mesmas. “Indígenas não prestam, são indolentes e malandros e querem criar Estados independentes. Fruto de preconceitos arcaicos, o racismo está ancorado na falta de respeito e na ignorância sobre a diversidade cultural brasileira e sobre a possibilidade de haver modos de vida baseados em sólidos conhecimentos que priorizam o bem-viver de todos”, diz Terena.

“Sob a égide do ódio, as estruturas governamentais sustentam-se ao bel prazer da perseguição histórica aos povos originários e pela tentativa do roubo das narrativas desde a colonização.” 

O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) aponta ainda que, ao anunciar o início do plano de vacinação, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, referiu-se apenas aos ‘indígenas aldeados”. O termo “remete ao período da ditadura militar e representa uma discriminação”, como afirma o Conselho, em nota. E, para o pesquisador Gercídio Valeriano, da Articulação Nacional de Indígenas em Contextos Urbanos e Migrantes, também é razão para um impeachment de Bolsonaro.

Ocupação ilegal e violência contra indígenas

O jurista Eloy Terena fala ainda sobre a preocupação com a ocupação ilegal das áreas indígenas. Segundo o advogado, o governo Bolsonaro está facilitando a legalização desse tipo de ocupação ilegal. E cita a Instrução Normativa número 9, publicada pela Funai de Bolsonaro em 22 de abril do ano passado. Nela, a Funai passa a considerar passível de emissão de Declaração de Reconhecimento de Limites (documento que atesta que a propriedade não incide em Terra Indígena (TI) toda posse (sem escritura) ou propriedade que não incida apenas sobre Terra Indígena Homologada; Reserva Indígena; Terras Indígenas Dominiais. “Ou seja, libera para a compra, venda e ocupação todas as Terras Indígenas em estudo, as Terras Indígenas delimitadas pela Funai e as Terras Indígenas declaradas pelo Ministério da Justiça, além das áreas sob portarias de restrição de uso”, explica.

Essa postura mais agressiva do governo Bolsonaro teve consequências perversas para as populações indígenas em seus territórios, conta o advogado. “No Mato Grosso do Sul, estado com o maior número de casos, um trator adaptado foi utilizado por fazendeiros em graves ataques contra comunidades indígenas. Segundo os moradores da TI Dourados, o trator possuía uma perfuração na lateral, através da qual eram disparados tiros em todas as direções. Na denúncia feita pelos indígenas, as investidas contra os Guarani-Kaiowá ocorriam sempre entre as 23h e as 4h.”

O jurista lembra também do “caveirão rural”, assim apelidado pelos indígenas, para retratar o nível das violências e violações a que os povos indígenas estão submetidos no Brasil. “O caveirão é um trator blindado, utilizado por fazendeiros do Mato Grosso do Sul para atacar indígenas Guarani e Kaiowá em retomadas próximas à Reserva de Dourados.”

Desmatamento e mineração

Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) apontam para um aumento de 30% do desmatamento na Amazônia Legal em 2019 em relação a 2018, atingindo os estados de Roraima, Acre, Amazonas e Pará. As treze Terras Indígenas mais desmatadas, destaca Eloy Terena, foram: Ituna/Itatá, Apyterewa, Cachoeira, Trincheira Bacajá, Kayapó, Munduruku; Karipuna, Uru-Eu-Wau-Wau, Manoki, Yanomami, Menkü, Zoró e Sete de Setembro.

“Sem dúvidas o ataque à fauna e à flora já seria motivo para sustentar e engajar um pedido de impeachment, haja vista que o papel do Executivo é justamente o contrário de tudo o que tem sido feito por Bolsonaro”, sentencia Terena.

De acordo com o jurista, as Terras Indígenas ocupam 13% do território nacional, 98% delas ficam na Amazônia Legal e um terço dessas terras é alvo de cobiça das mineradoras. “Ao todo, existem 4.777 processos incidentes em Territórios Indígenas na Amazônia Legal. Só no Pará registraram-se 2.357 títulos minerários concedidos pelo poder público, abrangendo desde autorizações de pesquisa a concessões de lavra”, critica Eloy Terena.

“Alguns territórios como as Terras indígenas Sawré Muybu, Xikrin do Rio Caeté, Kayapó e Arara têm sua área praticamente coberta por interesses minerários. O território mais afetado é o dos Yanomami, onde algumas aldeias já contam com cerca de 92% das pessoas contaminadas por mercúrio, usado na mineração de ouro”, conta. “Ademais, cerca de 56 TIs têm mais de 60% de sua área requerida por processos. Em áreas indígenas menores, esses processos ocupam facilmente mais de dois terços de seus territórios e oito terras indígenas terão mais de 90% de sua área comprometida. Além da mineração, outra ameaça são os projetos de hidrelétricas nas terras indígenas, que estão sendo implementadas sem consulta e consentimento prévio, livre e informado, conforme dispõe a Convenção 169 da OIT.”