'DESILUSÃO'

Abstenção recorde nas eleições de 2020 cria novo desafio ao sistema político

Cientistas políticos afirmam que é possível recuperar eleitorado, mas missão será “difícil e demorada”

Elza Fiúza/ABr
Elza Fiúza/ABr
TSE diz que 11 milhões de eleitores deixaram de votar no segundo turno, o que representa 29,47% do eleitorado

São Paulo – As eleições municipais de 2020 registraram um recorde de abstenção e, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 11 milhões de eleitores deixaram de votar no segundo turno, em todo o Brasil, o que representa 29,47%. Para cientistas políticos, o desinteresse e desgaste do eleitorado com o sistema político coloca um novo desafio para partidos e candidatos em 2022.

Em algumas capitais, os índices de abstenção foram recordes. No Rio de Janeiro, 35,4% dos eleitores deixaram de votar. Em Porto Alegre, 32,8% faltaram e São Paulo teve 30,8% de não votantes. O cientista político e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC), Vitor Marchetti, alerta que a facilitação de justificar a ausência, por meio do E-Título, pode aproximar o Brasil ao voto facultativo.

“Dentro da democracia representativa, o eleitor está acreditando que o voto tem pouco impacto e está em desgosto com a política e todas as facilidades criadas pelo TSE, para justificar voto, aproximam o país desse perfil. Eu não acho que isso coloca nossa democracia em crise ou deslegitima o resultado eleitoral, mas o perfil facultativo do voto coloca um desafio aos políticos”, afirmou à RBA.

Os dados de 2020 mostram que a abstenção nas eleições é um fenômeno crescente. Em 2018 e 2016, a média de ausência foi de 21%. Anteriormente, nas eleições para cargos em municipais de 2012, 19,12% se ausentou. Em 2008, 18,09% se abstiveram e 17,3% faltaram em 2004. O cientista político e coordenador do mestrado Gestão em Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Cláudio Couto, acredita que as próximas campanhas eleitorais terão de incentivar os eleitores a comparecem à urna, assim como ocorre nos Estados Unidos.

“É possível que ocorra o momento em que os candidatos terão que pedir não só o voto, mas o comparecimento do eleitor. Isso já começou, com as campanhas do TSE para encorajar as pessoas a votarem, mas não ficaria surpreso se isso entrar no discurso dos próprios candidatos”, disse ele. Marchetti adota a mesma linha de raciocínio. “Agora, os políticos não precisam convencer os eleitores a votarem neles, mas também a sair de casa”, acrescentou.

Desilusão e cansaço

Alguns fatores podem explicar a desilusão do eleitorado com as eleições, na avaliação de Vitor Marchetti. As gigantes manifestações, realizadas em junho de 2013, contra o sistema político, o golpe contra a ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016, e a Operação Lava Jato podem ter colocado a política em descrédito.

“Esse período só ajudou a construir a narrativa de que política só beneficia políticos, corrupção e desvio de dinheiro. Isso pode até ter desestimulado os eleitores”, analisa o professor da UFABC. Por outro lado, Cláudio Couto acredita que o desinteresse é motivado pelo cansaço da população com o debate.

O professor da FGV acredita que é possível resgatar o eleitorado, mas não é uma tarefa simples e rápida. “É um trabalho de longo prazo, com a necessidade de trazer notícias melhores do sistema político. Entretanto, o principal fator necessário é a redução dessa radicalização da política, que cria debates acalorados e tem deixado as pessoas cansadas”, acrescentou.

Mostrar ao eleitor que a presença do Estado pode interferir positivamente na vida dele, pode incentivar a participação no pleito. Vitor Marchetti diz que a crise sanitária e econômica, provocadas pela pandemia de covid-19, pode estimular o eleitor, numa eleição futura.

Além disso, outra mudança que atrai novos eleitores é a renovação dos quadros partidários. Nomes como Guilherme Boulos (Psol), Manuela D’Ávila (PCdoB) e Marília Arraes (PT) oxigenam o sistema e atualizam o debate. “Estamos assistindo a uma mudança geracional das lideranças políticas, mais conectadas com os temas contemporâneos, como a questão dos direitos LGBTQI, racismo e gênero. Tudo isso tem entrado com força no debate político, o que mobilizou mais o eleitor jovem, tornando-o mais ativo”, afirma Vitor.

Guinada à direita em 2022?

Além da abstenção, as eleições de 2020 também foram marcadas por vitórias dos partidos de direita e centro-direita, que conquistaram o maior número das grandes prefeituras do país. PSDB, MDB, DEM, PSD e Podemos são maioria nas 94 maiores cidades do Brasil.

Os dois cientistas políticos afirmam que a extrema-direita perdeu força, junto com os outsiders. A tendência que começou em 2016, com as eleições de João Doria (PSDB) e Marcelo Crivella (Republicanos), se manteve com a vitória de Jair Bolsonaro, em 2018. “Porém, neste ano, mudou. A crise sanitária mostrou que é preciso de capacidade para pilotar o Estado. A demanda por políticas públicas favoreceu os políticos tradicionais. As aventuras políticas e os outsiders parecem chegam ao fim”, explica Marchetti.

Cláudio Couto acredita que, nesse momento, o perfil mais extremista perdeu força e essa tendência do eleitor deve durar até 2022. “Candidatos como Luciano Huck, que é um outsider, correm o risco de não se dar bem numa disputa”, avalia.

Apesar disso, ambos projetam uma disputa na próxima eleição presidencial com uma possível união entre centro-esquerda e centro-direita, diante da falta de lideranças nos partidos mais fisiológicos. “Acredito que essa centro-direita pode atrair PSB e PDT, que ficaram bem regionalizados nessas eleições. Se esse eixo de centro tiver uma abertura para algumas pautas progressistas, esses partidos vão se aproximar”, diz o cientista político da UFABC.

Até lá, dois caminhos podem ser explorados para a conquista de espaço para a esquerda. Enquanto Marchetti diz que o campo progressista precisa entender as novas demandas dos trabalhadores, Cláudio Couto lembra que as abstenções provam que há espaço para crescer e reverter em voto.

“A abstenção pode ser um caminho de crescimento para 2022. Agora, dependerá da forma que o debate vai avançar e, neste momento, estamos vendo a recessão da radicalização e o discurso moderado vencer a eleição. Isso ocorrendo, abre espaço para mais pessoas voltarem ao debate eleitoral”, explicou o professor da FGV.

“O campo progressista já está bem apropriado dos direitos civis, mas o calcanhar de Aquiles é penetrar nos direitos trabalhistas, onde não se sabe mais qual o perfil do trabalhador. O país passou por uma uberização e aderiu à lógica do “microempreendedor”, e é nesse perfil que o campo progressista precisa chegar”, finaliza Vitor Marchetti.


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