Entrevista

‘Não é fácil, mas é possível pensar numa vitória de Boulos’, diz André Singer

“O radicalismo vem de um lado só. Boulos não fala em eliminar ninguém. Isso só existe em regimes autoritários, e por isso digo que nossa democracia está ameaçada”, diz cientista político

Eduardo Maretti/RBA
Eduardo Maretti/RBA
"Bolsonaro diz que prefere voto em papel para preparar cenário em que se perder vai dizer que houve fraude"

São Paulo – Apesar da dificuldade de o candidato do Psol, Guilherme Boulos, vencer a eleição no segundo turno em São Paulo, no próximo domingo (29), a chance de vitória é real. A opinião é do cientista político André Singer, da Universidade de São Paulo. “Boulos tem uma aceitação mais ampla do que o setor inicial que o apoiava. Precisa ampliar bastante para ter condição de chegada”, disse, no programa Entre Vistas, da TVT. “A disputa é dura. Covas é prefeito (comanda a máquina da prefeitura), o PSDB tem tradição na cidade e há um eleitorado conservador importante em São Paulo. Não é fácil, mas é possível pensar em vitória.”

Para ele, o caráter político de Boulos não pode se confundir com o “radicalismo” com o qual setores conservadores, de direita e extrema direita, querem identificá-lo. “Radical é o que vai à raiz das coisas. Boulos tem uma visão radical ao compreender que boa parte dos problemas contemporâneos se devem ao capitalismo. Mas não é ‘radical’, no sentido de que compreende que só se faz política construindo maiorias, e para isso tem que ser flexível.”

O cientista político comentou a criação, nos últimos anos, segundo ele, de uma falsa polarização entre direita e esquerda, que teria sido construída com a colaboração da esquerda, mas foi criada pelo extremismo de direita. “Precisamos desfazer esse equívoco – disse, em relação à imprensa brasileira – de que há uma polarização dos dois lados, como se os dois lados fossem responsáveis por essa polarização. O radicalismo vem de um lado só. Boulos não fala em eliminar ninguém. Isso só existe em regimes autoritários, e por isso digo que nossa democracia está ameaçada.”

Eleições de 2020 e de 2022

O analista entende que, a partir da eleição municipal, ainda não é possível prever quais serão as forças que disputarão o poder no país em 2022. Embora o presidente Jair Bolsonaro tenha se saído mal em 2020, ele continua competitivo em termos eleitorais. “Primeiro porque é presidente da República. Em segundo lugar, porque, para surpresa de muitos, inclusive a minha, manteve apoio durante pandemia.”

Esse apoio popular se deve, em parte, ao auxilio emergencial, que vai vigorar até dezembro. Por outro lado, “o lulismo está de pé”, afirmou. O autor de Os Sentidos do Lulismo (ed. Companhia das Letras) ressalta que, no cenário para 2022, há “a grande incógnita” sobre se o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva será candidato ou não, “o que faria muita diferença”.

Singer saudou a renovação do pleito de 2020 com a eleição de LGBTs, muitas negras, negros e transexuais. “Isso rompe, mexe com a estrutura tradicional. Mas é importante que esses novos personagens tomem fôlego, porque a luta é longa”, advertiu.

Assista à entrevista

Singer fala ao jornalista Juca Kfouri

Para ele, as eleições municipais mostraram vitórias de direita, de esquerda e de centro, revelando “diversidade” democrática. “É importante para a democracia que as eleições tenham ocorrido normalmente, porque elas projetam uma eleição que pode também ser normal em 2022.”

O trio de partidos que se saíram melhor – DEM, PSD e PP – “fazem parte da velha direita, são a velha Arena”, avalia Singer, em referência ao partido que reuniu os políticos que deram suporte civil à ditadura iniciada em 1964 e encerrada em 1985 no Brasil. A eleição de 2020 parece ser “um rearranjo” dentro da direita.

“Bolsonaro se enfraqueceu, demonstrou não ser um homem de partido e fica mais dependente da velha direita”. A análise é semelhante à do cientista político da Universidade Federal do ABC Vitor Marchetti.

Bolsonaro e ameaça à democracia

Porém, também há motivos para preocupação, na opinião de André Singer, decorrentes dos problemas e atrasos na apuração dos resultados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “Preocupa porque pode ter havido um ataque cibernético, que não está muito claro, e isso ameaça uma cláusula fundamental do processo democrático, a lisura das eleições, (que) precisam ser críveis no sentido de que não houve fraude.”

A segunda preocupação é a postura de Bolsonaro, que passou a declarar que quer voto em papel em 2022, e que não confia no atual sistema brasileiro. “Ele faz isso para preparar um cenário do tipo (Donald) Trump, em que se perder vai dizer que houve fraude.” Singer mencionou o livro Como as Democracias Morrem (ed. Zahar), de Stevan Levitsky e Daniel Ziblatt. Segundo os autores, um dos primeiros passos para isso é o perdedor não reconhecer que perdeu.

Aécio, Trump e Bolsonaro

Depois de mais de duas semanas em que o democrata Joe Biden foi eleito presidente dos Estados Unidos, o atual mandatário, o republicano Donald Trump, não admite a derrota. Ele insiste, sem apresentar nenhuma prova, que as eleições foram fraudadas, e tem perdido ações na Justiça.

Antes da potencial ameaça representada por Bolsonaro, a comparação imediata com o Brasil são as eleições de 2014, quando o então candidato do PSDB, Aécio Neves, se recusou a aceitar a vitória de Dilma Rousseff e prometeu que ela não governaria. “Foi o começo do golpe parlamentar. Não chamo o impeachment da presidente Dilma de golpe de Estado clássico”, afirmou Singer.

Segundo ele, a postura de Aécio representou “o primeiro canto da sereia golpista, no qual PSDB entrou, e acabou prejudicando o próprio PSDB”. Prova disso é que, em 2018, o partido, que sempre havia sido competitivo ficou com 5%, enquanto o PT, que perdeu, ficou com 45% dos votos com Fernando Haddad. Isso mostra que “a síndrome golpista antiga no Brasil muitas vezes prejudica o aprendiz de feiticeiro”, na opinião do analista da USP.