Entrevista

Ermínia Maricato: especulação imobiliária impede cinturões agroecológicos nas cidades

A professora e pesquisadora Ermínia Maricato defende a existência de cinturões agroecológicos no entorno das cidades como uma questão central nas eleições deste ano

Luiza Castro / Sul21
Luiza Castro / Sul21
Ermínia Maricato: "É um sofrimento muito forte que atinge as pessoas no que se refere a habitação, mobilidade"

BrasildeFato – A professora e pesquisadora Ermínia Maricato, ex-secretária-executiva do Ministério das Cidades e ex-secretária de Habitação e Desenvolvimento Urbano do governo federal, defende cinturões agroecológicos no entorno das cidades como uma questão central para a discussão de políticas municipais no contexto das eleições deste ano. A distância entre o local onde os alimentos são produzidos e o mercado consumidor é apontada pela pesquisadora como um problema para os municípios brasileiros.

“Gasta energia à toa, polui, é um gasto inútil. Por que não produzir os alimentos próximos de quem consome? Por que não colocar isso na merenda escolar? É tão absurdo a gente distanciar cidade e campo. Veja como o agronegócio das commodities prejudica as cidades, o meio ambiente”, ressalta Maricato.

A urbanista entende que no contexto urbano o principal entrave para que essa política seja encampada no contexto municipal é a força da especulação imobiliária que promove a expansão horizontal das cidades.

Maricato participa, nesta terça-feira (20), de mais uma etapa do curso do Projeto Brasil Popular, discutindo saídas para a crise no Brasil. Ermínia coordena o GT do Projeto Brasil Popular que discute o desenvolvimento justo e igualitário das cidades. A aula on-line ocorre sempre às 19h.

Para a professora, há muito pouco nos planos de governo de candidatos a prefeituras e câmaras para que a histórica segregação espacial e de acesso nas cidades seja combatida e, consequentemente, reduzida.

Ela afirma que é preciso pensar menos em “abstrações” ligadas ao âmbito federal e mais em soluções para problemas do cotidiano, como alternativas para o transporte público e melhores condições de moradia.

Boas respostas para as fragilidades urbanas passam por uma palavra, segundo a professora: capilaridade. Ou seja, maior participação dos poderes locais – não só institucionais – nas construções políticas, sociais, urbanas, ambientais e tudo que se faça relacionado ao território em que vivemos.

A pesquisadora diagnostica uma cooptação das forças políticas democráticas por “interesses institucionais”, o que as distanciou das periferias, do movimento negro, das mulheres trabalhadoras.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Maricato fala da importância do controle da informação no desenho urbano e clama por “interações paulofreireanas” entre as cidades, a agroecologia, a universidade, os políticos locais e a população local.

Leia a entrevista completa

Qual é o contexto estrutural das cidades, considerando a pandemia e o governo que temos neste momento?

As forças democráticas de esquerda não estão dando a devida importância nem para as questões urbanas e nem para esta eleição municipal. 85% da população brasileira mora na cidade. Alguém pode argumentar: “bom, mas as cidades são muito diferentes, a maior parte dos municípios são pequenos, dominados por oligarquias, despolitizados”. Tudo isso é verdade.

Mas nós temos grandes metrópoles e temos que pensar que a reprodução da força de trabalho, usando um termo marxista, se dá nas cidades, principalmente. É o cotidiano, são as condições de vida. É um sofrimento muito forte que atinge as pessoas no que se refere a habitação, mobilidade – mobilidade é algo fundamental para a qualidade de vida das pessoas.

O transporte no Brasil está caro e ineficiente. As pessoas são mantidas no que o [geógrafo baiano] Milton Santos chamou de exílio da periferia. Não tem nem transporte no fim de semana.

Essa condição cotidiana do trabalhador e da grande maioria da população brasileira não está fazendo parte da discussão da esquerda. A esquerda está falando com a Praça dos Três Poderes.

Falta olhar para o local, então?

Exatamente. Vamos começar lá na década de 70: como é que a gente reconstruiu o ciclo democrático? Por meio do poder local. O que foram as prefeituras democráticas? Foram prefeituras eleitas antes de a ditadura acabar, inclusive. Era proibido eleger prefeitos de capitais, e a gente já estava elegendo prefeitos e vereadores de cidades como Diadema, que iniciaram um ciclo de inclusão social, urbana, territorial, fundamental.

A esquerda chegou no poder federal por causa dos vínculos do poder local bem-sucedido. Nós tínhamos uma campanha contra nós e nós provamos que éramos competentes para administrar.

Quando a esquerda chega no governo federal, o que acontece? Esvazia a capilaridade da participação, do compromisso. A maior parte da população trabalhadora mora em lugares sem Estado e sem mercado capitalista imobiliário. É uma cidade autoconstruída, que se torna refém das políticas clientelistas – vai pôr asfalto, vai pôr ponto de ônibus, vai levar a creche. Aí a esquerda assumiu muito mais um espaço institucional e a cidadania arrefeceu.

Há um diagnóstico de por que isso ocorreu? Qual o motivo?

Você tem questões internacionais, essa globalização ultraliberal acompanhada em uma mudança no capitalismo. Essa mudança veio com uma tecnologia absolutamente revolucionária, apropriada por grandes corporações, que levou a um movimento conservador e de direita.

Acho que um dos maiores problemas que nós temos hoje é o controle da informação. Não tenho a menor dúvida. Uma das maiores críticas que eu faço às gestões federais do PT – eu reconheço muito avanço -, mas a questão da informação, da democratização da informação, da construção de veículos de imprensa, não foi levada tão a sério.

Nós temos, hoje, essa manipulação das redes sociais. O mundo está mudando. A esquerda deveria se tocar que o mundo está mudando de uma forma impressionante e nós estamos diante de um novo ciclo, que exige renovação, ousadia, novas respostas.

Como o Marx não pensou as cidades, o espaço urbano, a esquerda não sabe o que fazer com o espaço urbano.

O Estado patrimonialista brasileiro tem a tendência de cooptação. E eu acho que nossas forças foram capturadas pelo institucional, e as periferias sobraram para as igrejas pentecostais, para o crime organizado – que avançou muito – e as milícias, que é outra forma de crime organizado.

Como faz para quebrar essa estrutura, sendo que é algo tão marcante, tão enraizado na nossa sociedade?

Contra essa manipulação das informações, que estão abstraindo tudo, que estão trazendo de volta o terraplanismo, as bobagens como o “boi bombeiro”; contra essa tendência da sociedade líquida, contra essa tendência de direita, contra os absurdos todos que a gente está vendo serem divulgados, é o poder local, é voltar para o poder local.

O poder local exige a organização presencial. A própria pandemia: onde é que ela é principalmente combatida? Claro que depende do Ministério da Saúde, claro que nós dependemos de decisões nacionais e orçamentárias. Mas nós temos uma condição de habitação que não permite o isolamento. Nós temos gente passando fome. Então, por tudo isso, você tem que estar presente onde as pessoas estão. Nos bairros, nas escolas, nas igrejas, nas praças, nas ruas.

É preciso essa capilaridade que nós tínhamos, com a igreja católica nas comunidades de base, como na década de 70. É um esforço paulofreiriano de a gente ensinar e aprender.

Acho que essas eleições, infelizmente, não foram compreendidas, a importância delas, para você retomar a reconstrução da democracia no Brasil. Felizmente, estamos tendo movimento, mas não vai ser tão rápido.

Temos aí coisas novas: mandatos coletivos, temos uma luta antirracista que está tão forte como nunca esteve no Brasil, a luta de gênero. A esquerda minimiza essas lutas identitárias. Tudo você coloca a luta de classes em primeiro lugar, mas de que classe estamos falando?


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