Militares no governo

Reação das Forças Armadas às críticas de Gilmar Mendes foi ‘exagerada’

Associação ao “genocídio”, com mais de 70 mil vítimas, “não é completamente fora do contexto”, diz especialista, que observa comprometimento dos militares

Fernando Frazão/EBC
Fernando Frazão/EBC
Ministério da Defesa entrou com representação na PGR em desfavor do ministro do STF Gilmar Mendes, após críticas à condução do governo na pandemia que já matou mais de 70 mil pessoas

São Paulo – Para o especialista em Forças Armadas João Roberto Martins Filho, a instituição está entrando, cada vez mais, como parte do problema da crise política provocada pelo governo de Jair Bolsonaro. “E não como forças que deveriam ficar – se fosse possível ainda – fora dessa situação”, afirma. A prova dessa ligação foi o anúncio feito nesta terça-feira (14) pelo Ministério da Defesa. A pasta enviou representação à Procuradoria-Geral da República (PGR) contra uma declaração do ministro Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes. 

Ao criticar a participação de militares no Ministério da Saúde, em meio à pandemia do coronavírus, o ministro do STF afirmou que o Exército está se associando a um genocídio. A manifestação, no entanto, indignou os comandantes das três armas – Exército, Marinha e Aeronáutica – que se associaram ao Ministério da Defesa em movimento de repúdio. A representação em desfavor de Gilmar, ainda leva em conta normas do Código Penal Militar e da Lei de Segurança Nacional – dispositivo criado na ditadura civil-militar. 

Aproximação e comprometimento

Professor sênior em Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos da Defesa, João Roberto avalia que a reação foi “exagerada” e agrava uma situação de crise política que já era preocupante. De acordo com ele, o mais correto seria uma nota reclamando o uso do termo por parte do Ministério da Defesa, ou do Exército, não das demais forças que sequer foram citadas pelo ministro do STF. 

A reação, na prática, indica que as Forças Armadas aprovaram a aproximação e o comprometimento criados pelo governo Bolsonaro. “E estão presas numa armadilha que remonta à guerra fria”, destaca o especialista, em entrevista ao jornalista Glauco Faria, da Rádio Brasil Atual

“A situação está muito grave. Até pouco tempo atrás nós não tínhamos manifestação dos comandantes das forças, agora nós temos. Não é só o Ministério da Defesa, que é um ministério político e não deveria ter um general lá, as coisas se misturam. Deveria ser um político com capacidade de articular os interesses das forças armadas com o mundo político. E agora nós temos os três comandantes falando. Então nós demos um passo a mais nessa politização das forças armadas que era prevista, mesmo antes do governo Bolsonaro começar. Eu diria que falta prudência aos chefes militares em perceber que esse caminho é um caminho sem volta”, observa. 

É genocídio mesmo? 

Autor dos livros A dinâmica militar das crises políticas na Ditadura (1964-1969) e O Palácio e a caserna, João Roberto adverte para o que estaria por trás da palavra “genocídio”. Em nota nesta terça, Gilmar Mendes comentou sobre a escolha para criticar a postura do governo Bolsonaro no enfrentamento da crise sanitária e econômica. No dia anterior, o vice-presidente, Hamilton Mourão, rebateu a declaração, aconselhando que “se ele (o ministro do STF) tiver grandeza moral, tem que se retratar”. 

Para o especialista em Forças Armadas, ainda que não usasse exatamente o mesmo termo de Gilmar Mendes, “numa epidemia que está matando 70 mil pessoas e que vai matar muito mais, não é completamente fora do contexto”. Entre os povos indígenas as acusações sobre o governo ficam ainda mais grave. Até o momento, 501 indígenas já morreram em decorrência da covid-19, segundo levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib).

“A população indígena brasileira tem 890 mil pessoas recenseadas. 500 (mortes) em 890 mil, equivaleria a 110 mil na população brasileira de mais de 200 milhões de habitantes”, calcula João Roberto. 

“A proporção é maior. Gilmar Mendes levantou uma questão chave, de erros do governo Bolsonaro que um dia vão ser avaliados em tribunais, aqui no Brasil ou fora. E eles estão sendo contestados pela presença massiva de oficiais das Forças Armadas no governo e pela presença de inúmeros ministros, inclusive os ministros chave, o ministro (Luiz Eduardo) Ramos, (Walter) Braga Netto, Augusto Heleno. Essa identificação está sendo feita e vai ser feita”, alerta o professor sênior. 

A imagem das Forças Armadas 

Para o especialista, é inegável que haverá um abalo na imagem das Forças Armadas no seu conjunto, que a despeito da ditadura civil-militar, eram vistas como uma das instituições de maior confiança. A pesquisa Vox Populi desta terça (14) já mostra que a presença de um general no Ministério da Saúde é reprovada por 82% dos eleitores. A amostra também apontou que 65% dos entrevistados acham que os militares não devem se envolver com a política. 

Agora é uma questão de quando as Forças Armadas vão entender “que é necessário se retirar desse governo. A não ser que eles queiram cada vez mais se queimar junto à crise do governo”. João Roberto, contudo, não vê uma saída tão cedo.


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