Estratégia da mentira

STF, Polícia Federal e CPMI fecham cerco sobre esquema de ‘fake news’

“Os neofascistas usam a desinformação para manter as suas hordas, as hordas bolsonaristas, constante e plenamente mobilizadas”, diz Sergio Amadeu

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Não são apenas robôs replicando. Existem as hordas, o trabalho profissional e um trabalho voluntário

São Paulo – Mesmo com a paralisação da CPMI no Congresso Nacional, devido à pandemia de covid-19, o cerco se fecha cada vez mais sobre o núcleo central do esquema de produção e distribuição das chamadas fake news. Nesta quarta-feira (27), a Polícia Federal executou mandados de busca e apreensão no Distrito Federal e vários estados, tendo como alvo, entre outros, o empresário Luciano Hang, dono da Havan.

Paralelamente, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinou que se incluísse parte do período da campanha eleitoral de 2018 na quebra do sigilo bancário e fiscal do empresário e outros apoiadores de Jair Bolsonaro. Todos são suspeitos de financiar uma rede de notícias falsas que pode ter sido fundamental para a eleição do atual presidente.

O sociólogo e professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) Sergio Amadeu explica que as chamadas fake news são, na verdade, um termo para definir práticas diferentes entre si, mas que se aglutinam num mesmo esquema. Os bolsonaristas se valem de várias técnicas.

Por exemplo, produzir uma desinformação que funcione como uma “vacina” contra uma notícia que pode incriminar alguém ou um grupo de pessoas. Ou algo ainda mais grave, como por exemplo espalhar a informação de que a cloroquina “salva vidas”. “Então, jogam isso na rede de Twitter e colocam robôs para replicar isso. Mas não são apenas robôs. Existem as hordas, distribuidores principais, o trabalho no WhatsApp, de disparo profissional, e também um trabalho voluntário.”

Para Amadeu, como definição, as chamadas fake news (notícias falsas ou mentirosas) são apenas um dos elementos de um contexto maior – e complexo –, que ele chama de “desinformação” e que envolve a descontextualização da informação, a fabricação de fatos, a negação da história, a confusão entre opinião e fatos e, por fim, as próprias fake news.

Fake news são, na verdade, transformar mentiras, descontextualizações etc. em matérias publicadas por um órgão informativo, em geral supostamente de imprensa. Eles criam veículos, jornais, como esse Jornal da Cidade Online, que é um repositório de desinformação em escala.”

O blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, também alvo das investigações da Polícia Federal, é acusado de divulgar ofensas e ameaças ao STF. O ministro Alexandre de Moraes, relator do inquérito sobre fake news no tribunal, considera o chamado “gabinete do ódio” como associação criminosa.

Segundo Amadeu, outra técnica de desinformação é transformar opinião em fato. Ele cita “um exemplo estapafúrdio”: a TV Globo, por supostamente ser contra Bolsonaro, ser tachada de “comunista”. Na época da campanha eleitoral, o empresário Luciano Hang disseminou a ideia por redes sociais. “A globo (sic) parece a Cubavision, TV estatal comunista”, escreveu então.

“É uma opinião dele, mas estapafúrdia. Então, os discursos contra Bolsonaro, por exemplo, viram ‘marxistas’. Isso não é exatamente fake news, mas sim transformar uma opinião em fato”, anota o professor da UFABC.

Uma “opinião” do clã Bolsonaro que teve repercussão mundial e comprometeu as relações brasileiras com a China, o maior parceiro comercial brasileiro, foi a de que o país oriental teria criado o coronavírus, numa espécie de conspiração comunista contra o mundo.

“Alguns pesquisadores europeus usam o termo ‘desinformação’, porque há a transformação de teorias falsas em teorias científicas, por exemplo; ou a descontextualização, a negação da história, como a ‘teoria’ de que o Holocausto não existiu”, diz Amadeu.

“E existe a fake news propriamente dita, que é tentar produzir uma desinformação como notícia de um órgão de imprensa. É diferente do fascismo clássico, por isso uso o termo neofascismo, mas que tem elementos do fascismo clássico. Por exemplo, usar a desinformação para manter as suas hordas, as hordas bolsonaristas,  constante e plenamente mobilizadas.”

O blogueiro Allan dos Santos é “um pouco pior”, na opinião do sociólogo, porque “faz um programa que diz que é sério, usando fake science (ciência falsificada). Tenta organizar algo com aura de verdade e transformar aquela mentira numa notícia.”

“Organização criminosa”

Em tempo de pandemia, a situação fica ainda mais grave, destaca a deputada federal  Natália Bonavides (PT-RN), integrante da CPMI das Fake News no Congresso Nacional. “São fake news que matam”, diz.

Para Amadeu, “eles fazem do erro, do equívoco, da descontextualização, uma estratégia política, intencional, para que a gente perca os parâmetros da realidade, e o que passa a valer são apenas valores, como os da família – ‘mulher tem que ficar em casa trabalhando’, ‘temos que voltar aos valores da reação’ etc.”

Natália afirma que o esquema investigado no âmbito do colegiado, pela Polícia Federal e pelo STF é de “uma organização criminosa, no sentido jurídico do termo, e não é modo de falar”.

Os trabalhos da comissão dividem o esquema em três núcleos: “o político, que decide a pauta e o alvo; o operativo, que produz o material e dá o start, faz os disparos, e o financeiro”, diz a parlamentar. Segundo ela, é um esquema muito profissional, organizado e custa muito dinheiro.

No depoimento do sócio-proprietário da empresa Yacows Lindolfo Antônio Alves Neto, “a CPMI teve acesso a fotos do local de trabalho, mostrando caixas e caixas de chips, muitos celulares, contadores e muitos funcionários”.

A deputada destaca que o maior objetivo do esquema era ganhar as eleições, mas continua ativo. “Nunca foi para funcionar só nas eleições. Os empresários bolsonaristas têm grande participação nisso. Depois das eleições, eles colocam os tentáculos na própria estrutura do Estado, como o ‘gabinete do ódio’, pessoas com cargos públicos, que na verdade se dedicam a isso, à disseminação de notícias fraudulenta.”

O Sleeping Giants

Natália destaca como muito importante a atuação do coletivo Sleeping Giants, no Twitter, recém-chegado ao Brasil, que está “alertando” as empresas sobre a divulgação de seus anúncios em sites ligados a fake news. “Desembarcado” no país no dia 17, o grupo já “convenceu” anunciantes como Zoom, Telecine, Submarino, Canal History e outros a  remover publicidade do Jornal da Cidade Online, citado por Amadeu.

“A ação do Sleeping Giants é muito importante, dá resultado, mas a forma de financiamento deles não é só esse. Tem financiamento empresarial direto, mesmo. Não é coincidência que o velho da Havan tenha sido alvo da operação da Polícia Federal.”

Nesta quarta, o ministro Bruno Dantas, do Tribunal de Contas da União (TCU), determinou que o Banco do Brasil suspenda sua publicidade em sites, blogs, portais e redes sociais acusados de propagar informações falsas.

A presidenta do PT, deputada federal Gleisi Hoffmann (PR), anunciou que seu partido vai requerer o compartilhamento do inquérito conduzido pelo ministro Alexandre de Moraes, com as provas da ação de empresários para o disparo de fake news. Segundo ela, as provas contidas no inquérito “fortalecem ações do partido no Tribunal Superior Eleitoral para cassar a chapa Bolsonaro-Mourão por crimes eleitorais”.