Ecos de 1964

Com ou sem golpe, Bolsonaro marcha rumo ao autoritarismo, dizem Singer e Safatle

Presidente ensaia golpe, mais vai precisar de apoio dos militares. Enquanto isso, reforça seus poderes em embates com o Supremo e o Congresso

Marcos Corrêa/PR
Marcos Corrêa/PR
Golpe: "Se Bolsonaro conseguir puxar um setor das Forças Armadas, o resto vem"

São Paulo – Como demonstra nas últimas semanas, com a participação sucessiva em atos antidemocráticos que atentam contra o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso Nacional, o presidente Jair Bolsonaro ensaia uma tentativa de golpe de Estado, incitando seus apoiadores, que são minoritários, mas aguerridos.

O sucesso na empreitada golpista vai depender do apoio dos militares. Mas mesmo que não consiga romper em definitivo com a ordem institucional, essas atitudes servem para que Bolsonaro possa acumular poder, marchando “lenta, contínua e imperceptivelmente” rumo ao autoritarismo.

Essas são as impressões do professor de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP) André Singer e do professor de Filosofia Vladmir Safatle, da mesma instituição. Eles debateram com a jornalista Talita Galli, no programa Bom Para Todos, da TVT, nesta segunda-feira (4), os rumos do governo em meio à pandemia de coronavírus, à saída do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro e às tentativas de interferência política na Polícia Federal.

Junto a outros acadêmicos da USP, eles assinam artigo publicado no jornal Folha de S.Paulo, em 24 de abril, no qual afirmam que o afastamento de Bolsonaro da presidência deve ser a principal prioridade das forças democráticas do Brasil. Se as instituições não reagirem logo para conter tal marcha autoritária, poderá ser tarde demais, não havendo mais saídas.

Pandemônio

“O que estamos vendo é uma escalada, que se dá durante esse período da pandemia, com uma perspectiva de implantar um regime autoritário no Brasil”, afirmou Singer, que citou a participação de Bolsonaro nos atos antidemocráticos, a última ocorrida no último domingo (3). A arma mais adequada para a sociedade se defender desse tipo de aventura golpista, segundo ele, é o impeachment.

Mas, neste momento, tal caminho parece, ao menos parcialmente, obstruído, em função da aproximação do presidente com os partidos do chamado “centrão”. Essa articulação renderia a Bolsonaro apoio suficiente para barrar, no Congresso Nacional, qualquer pedido de afastamento. Investigações determinadas pelo STF, que precisariam de autorização dos parlamentares, também seriam barradas.

“Essa sucessão de manifestações antidemocráticas está naturalizando um processo que não pode ser naturalizado. Temos que reagir e encontrar uma maneira de bloquear esse avanço autoritário”, disse Singer.

Impeachment

Para Safatle, “o Brasil não tem a menor condição de gerir duas crises ao mesmo tempo, a do coronavírus e a de Bolsonaro.” Ele ressalta que Bolsonaro não apenas atenta contra as instituições democráticas, como coloca a vida da população em risco.

Além da obstrução legislativa, o filósofo lembra que os processos de afastamento, no Brasil, dependem do apoio popular para serem impulsionados. Com o coronavírus, manifestações de rua se tornaram temporariamente inviáveis. “Parece que agora estamos numa situação meio invertida, como se o Congresso desse início ao processo de impeachment, e isso mobilizasse a população.”

Ele também criticou a “desorganização” da esquerda brasileira, que deveria liderar esse processo. Segundo ele, falta liderança e direcionamento na atuação dos partidos, o que contribui para maior desmobilização do conjunto da sociedade.

Autoritarismo furtivo

Para Safatle, o horizonte de Bolsonaro é o golpe. “Ele vai tentar agora, vai tentar daqui a um mês, dois meses, seis meses. Até 2022, ele vai estar tentando.” Apesar de não haver endosso aparente do conjunto das Forças Armadas a essa empreitada golpista, o filósofo afirma que é preciso o apoio apenas de uma parte mais “ousada” dos militares, que traria o restante da corporação a reboque, como ocorreu no golpe de 1964. “Se ele conseguir puxar um setor das Forças Armadas, o resto vem.”

Para Singer, “não vai haver golpe, não temos que pensar em termos de golpe”. Processo ainda mais perigoso, segundo ele, é o chamado “autoritarismo furtivo”, termo cunhado pelo cientista político polonês Adam Przeworski. É o que vem ocorrendo, por exemplo, na Hungria, onde o primeiro-ministro Viktor Orbán se aproveitou da pandemia e conseguiu uma autorização do Legislativo para governar a partir de decretos.

“A situação é mais complicada do que isso porque estamos caminhando todos os dias na direção do autoritarismo, lentamente, imperceptível e continuamente. Bolsonaro vai ficar tentando, mas não é que queira dar um golpe. Ele vai tentar expandir a sua concentração de poder a partir de embates sucessivos e cada vez mais altos”, disse Singer.

Confira a íntegra do programa Bom para Todos:


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