Salto do barco

O oportunismo de Sergio Moro: só agora viu quem era Bolsonaro?

Presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD) Valdete Souto Severo destaca que discurso de ex-ministro da Justiça “não fecha” e que instituições devem exigir respostas dele e de Bolsonaro

José Cruz/EBC
José Cruz/EBC
"A impressão que se tem é que existe um oportunismo do ministro do Sergio Moro no momento em que ele ainda consegue capitalizar essa saída para eventualmente concorrer à presidência da República em 2022"

São Paulo – A decisão do ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sergio Moro de sair do governo Bolsonaro pode ser vista como uma atitude oportunista, já que o presidente teria cometido, no exercício da função, não apenas tentativas indevidas de interferência política como também atos que podem ser considerados crimes de responsabilidade.

A avaliação é da presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD) Valdete Souto Severo. “É até engraçado porque a tônica da atuação de Moro como juiz da Lava Jato foi marcada por interferências políticas, vazamentos para a imprensa, interferência dele inclusive na atuação do Ministério Público, depois denunciada pelo The Intercept“, aponta, fazendo referência à atuação do ex-ministro como magistrado, à frente da Operação Lava Jato.

Além da postura aparentemente contraditória de Moro, Valdete também ressalta que ele deve explicações a respeito da exigência que diz ter feito ao aceitar o cargo no governo, de que sua família “deveria ser amparada” caso acontecesse algo com ele.

“O Ministério Público Federal, se existe Ministério Público Federal no nosso país, precisa chamar o ministro Sergio Moro e exigir que ele esclareça: afinal, que pensão é essa? Ele diz que a exigência que fez para entrar no governo Bolsonaro é que sua família não ficasse desamparada. Que pensão é essa, isso não tem previsão em lugar nenhum”, questiona. “Houve troca de favores? O que foi prometido?”

Valdete aponta ainda a existência dos possíveis crimes de responsabilidade por parte de Bolsonaro, de acordo com a fala de despedida de Moro, que exigem uma resposta das instituições. “Se nós já tínhamos várias razões para justificar esses tantos pedidos de impeachment que estão na mesa de Rodrigo Maia e não se entende porque não têm andamento, a declaração do ainda ministro da Justiça revela em tese pelo menos a prática de três atos que configurariam crime de responsabilidade.”

Confira abaixo os principais trechos da entrevista.

Oportunismo de Moro

A impressão que se tem é que existe um oportunismo do ministro do Sergio Moro no momento em que ele ainda consegue capitalizar essa saída para eventualmente concorrer à presidência da República em 2022. Toda a fala de Moro foi no sentido de que ele não tolera a interferência política na Polícia Federal, mas o que a gente vê é um governo que está aí há mais de ano e contra o qual há mais de 20 pedidos de impeachment em função de atos que revelam tanto interferência política como ações que podem ser configuradas como crime de responsabilidade. E até hoje o ministro estava absolutamente silencioso quanto a isso.

Não se viu ele falar contra o fato de Bolsonaro ter participado de manifestações pelo AI-5, fechamento do Congresso, nada foi falado quando o presidente da República disse que as pessoas poderiam sair às ruas mesmo tendo uma pandemia que determina o isolamento físico, indo contra as determinações do Ministério da Saúde e da OMS. Não se viu Moro pronunciar-se sobre nenhuma das denúncias feitas – e são muitas – sobre possíveis práticas de crime de responsabilidade pelo presidente da República. E de repente ele se vê incomodado com a interferência política.

É até engraçado porque a tônica da atuação de Moro como juiz da Lava Jato foi marcada por interferências políticas, vazamentos para a imprensa, interferência dele inclusive na atuação do Ministério Público, depois denunciada pelo The Intercept. Não fecha o discurso de “estou muito revoltado com interferência política”, causa estranhamento e possivelmente revela outra intenção que não a intenção de preservar a integridade do cargo como disse em coletiva.

Crimes de responsabilidade

Deve ser ressaltado que Sergio Moro disse coisas muito graves, indicou a prática de pelo menos três crimes de responsabilidade por parte do governo. Falou expressamente em interferência na Polícia Federal; disse que não assinou um decreto por ele assinado e publicado, o que poderia ser crime de falsidade ideológica; e disse expressamente que há um interesse do presidente da República em interferir em inquéritos que podem de alguma maneira comprometer seus filhos.

Se nós já tínhamos várias razões para justificar esses tantos pedidos de impeachment que estão na mesa de Rodrigo Maia e não se entende porque não têm andamento, a declaração do ainda ministro da Justiça revela em tese pelo menos a prática de três atos que configurariam crime de responsabilidade.

Moro e Bolsonaro devem explicações

O Ministério Público Federal, se existe Ministério Público Federal no nosso país, precisa chamar o ministro Sergio Moro e exigir que ele esclareça: afinal, que pensão é essa? Ele diz que a exigência que fez para entrar no governo Bolsonaro é que sua família não ficasse desamparada. Que pensão é essa, isso não tem previsão em lugar nenhum, e é preciso que ele esclareça o que ele está falando para o MPF. Houve troca de favores? O que foi prometido?

Há ainda a anuência, ainda que tácita, do ministro da Justiça em relação a tudo que foi praticado pelo governo e vem sendo reiteradamente denunciado, a AJD mesmo já fez denúncia internacional da prática de atos que em tese configuram crime de responsabilidade. Semana passada foi protocolada denúncia junto à Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Se ele vai à rede nacional e diz que estava sabendo de coisas acontecendo no governo e agora resolveu não mais compactuar, precisa justificar porque até hoje compactou com as práticas desse governo e que história é essa de pensão. Porque isso, sinceramente, não ficou claro.

Escolhas técnicas e escolha políticas

A impressão inicial é que esse discurso é de alguém que sai para daqui a pouco ser candidato à presidência, porque não condiz com a sua prática. Ele acha que não pode haver escolhas que não sejam técnicas, mas tivemos recentemente a escolha de uma secretária da Cultura, uma atriz, que não teria como se justificar sob esse aspecto. Tivemos a pretensão do presidente de nomear um filho para ser embaixador nos EUA e não era por critérios técnicos, isso sempre ficou muito evidente. E nunca houve uma fala do ministro Sergio Moro no sentido de repudiar essa prática. Ele mesmo levou gente de confiança pessoal para trabalhar no ministério.

Se fosse para falar em questão de interferência política e escolhas pessoais, teríamos que voltar à época da Lava Jato e revisar todas as denúncias de lawfare que estão sendo feitas há tanto tempo, por tantas entidades, praticado durante o período em que ele era juiz, e com objetivos políticos.
Muito menos do que o aparelhamento da Polícia Federal, o aparelhamento da magistratura e a existência de atos de um magistrado responsável por julgar crimes contra uma pessoa, como no caso contra o ex-presidente Lula, é algo incabível. Aliás, a história recente de Sergio Moro mostra bem o quanto é nociva a interferência política na magistratura e o quanto a magistratura não pode ser usada como trampolim para benefícios pessoais ou carreirismo político como aconteceu com ele.

Resposta das instituições

Já tivemos várias situações no atual governo em que pensamos “agora não tem como, não é possível que as instituições políticas nesse país não se manifestem e não façam alguma coisa”. Tanto no sentido de afastar um presidente da República que tem cometido atos que desonram a cadeira que ocupa como chamar para esclarecimentos um ministro da Justiça que, em cadeia nacional, declara tranquilamente que vários atos em tese criminosos foram praticados pelo chefe de Estado.

O problema é que nas últimas vezes em que essas coisas aconteceram, desde as eleições, o que a gente viu foi um silenciamento das instituições que poderiam alterar essa situação e responsabilizar quem praticou os atos. Parece que agora demos um salto, porque temos um ministro da Justiça que fez sua imagem acoplada à do atual presidente vindo a público. Dizer que o que disse Moro exige – isso não tenho dúvida, não sei se vai acontecer ou não – que a Câmara dos Deputados e que o MPF investiguem profundamente, senão não vamos poder falar que temos as instituições funcionando normalmente nesse país.

A AJD vai seguir insistindo na prática de denunciar o que está acontecendo. Nós não vamos nos “emocionar” com o fato de que de repente Sergio Moro virou alguém preocupado com os limites éticos da posição de um juiz ou de um ministro da Justiça. Vamos continuar denunciando e exigindo que as nossas instituições apurem esses fatos e que o Brasil retome uma caminhada de convívio minimamente democrático, porque não é isso que estamos vendo acontecer nos últimos tempos.