Pandemia e capitalismo

Que história vamos querer contar sobre esses tempos de coronavírus?

Série de livros da Boitempo aborda reflexos da crise na sociedade de agora e na que viveremos após o coronavírus; direitos autorais serão doados a MTST e Médicos sem Fronteiras

Arte RBA
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Boaventura, Dunker, Virgínia Fontes e Alysson Mascaro falam sobre crise atual e suas implicações na política, na psicologia, na economia e nas relações humanas

São Paulo – Um bate-papo virtual, na manhã desta sexta-feira (17), reuniu o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, o psicanalista Christian Dunker, a professora Vírginia Fontes e o filósofo do direito Alysson Leandro Mascaro. O tema: a pandemia capital. Esse é o nome da nova coleção lançada pela editora Boitempo para esses tempos de isolamento social pelo coronavírus. 

A série especial reúne e-books curtos “com reflexões de fôlego a preços acessíveis, que abordam a crise atual pela qual estamos passando e suas implicações na política, na psicologia, na economia e nas relações humanas”, informa a Boitempo.

Crise e Pandemia, de Mascaro, inaugura a coleção analisando a relação com o modo de produção capitalista. Na sequência virá Pandemia: covid-19 e a reinvenção do comunismo, coletânea do filósofo esloveno Slavoj Žižek, e A cruel pedagogia do vírus, ensaio de Boaventura.

Dunker está escrevendo A Arte da Quarentena para Principiantes. Os livros estão à venda no site da Boitempo que lançará, ainda, volumes de pensadores e ativistas como Angela Davis, Naomi Klein, Giorgio Agamben, Ricardo Antunes, Talíria Petrone, dentre outros.

Os direitos autorais de todas as obras serão revertidos para o Fundo de Emergência para Sem-Tetos afetados pelo coronavírus, organizado pelo Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST). As obras de Žižek terão os direitos revertidos à organização internacional Médicos Sem Fronteiras.

Vai passar?

O debate é mais que necessário. Afinal, que mundo teremos quando essa pandemia passar. E vai passar?

A resposta não é tão simples, afinal ainda estamos vivendo em pleno processo da disseminação da doença. Para o psicólogo Christian Dunker, existe uma lacuna no pensamento sobre a transformação social do coronavírus. Ele critica a equação entre vida e economia e o paradigma da aceleração da exploração.

“Žižek mostra como isso vai se tornar mais agudo. E o pretexto para os Estados se tornarem mais interventores, invadir, controlar a vida privada dos cidadãos”, afirma. “Mas também aposta no seu contrário. Como o vírus atinge a todos, vai ampliar o contato social, as pessoas sentiram o gosto da possibilidade da mudança. A pandemia colocou a gente pra viver de forma muito articulada ao outro. É uma crítica ao egoísmo.”

O psicólogo criticou o “descompasso” do presidente Jair Bolsonaro. “Nós, o Turcomenistão, a Nicarágua, temos presidentes que perdem regras elementares. No caso do Brasil, a gente tem um descompasso, um presidente agindo de forma errática, demitindo o ministro da Saúde.”

Em seu livro, que deve sair nas próximas semanas, Dunker vai abordar processos do medo, da angústia, a angústia social, considerações sobre o nível de ansiedade, como as famílias estão revivendo conflitos, também com as escolas, entre casais. “Há pessoas que terão o apoio do Estado, outros que serão objeto da necropolítica”, disse, lembrando a população que vê sua vida valer menos.

“Também fiz uma paródia de como sobreviver a isso. A moral do livro é: que história você vai querer contar sobre isso? Ficou embaixo do cobertor comendo chocolate ou fez intervenções, praticando para um outro jeito de circular o dinheiro e os afetos?”

O que virá depois?

O filósofo do Direito Alysson Mascaro falou sobre a reflexão que está em seu livro Crise e Pandemia. “Sobre o que se passa no Brasil, num tempo que o capitalismo mundial está em crise.”

Para ele, vivemos numa sociedade capitalista por meio de coerções sociais. “Uma sociedade que distribui a riqueza entre as pessoas de forma desigual. A mazela do capitalismo está aí: pessoas morrem, outras podem parar de trabalhar. E por mais que tentemos transformar essas situações sociais, nos coagem. Quando se quer lutar contra isso vem a polícia, o exército”, elencou.

O Brasil, avalia o professor, tem uma crise própria que se juntou com a crise da pandemia: o governo Bolsonaro. “O governo de extrema direita tenta resolver a crise com mais crise. A crise, para ele, é a forma de resolução da crise. Ele desloca um problema criando outro.”

Mascaro vê o Brasil chegando a uma situação próxima ao que foi o ano de 1968, com os militares no poder, quando o então presidente militar Costa e Silva morreu e o vice civil, Pedro Aleixo, não pode assumir. “O problema foi resolvido com um triunvirato militar que assumiu o poder, até que indicaram Médici”, lembrou.

“Com a fraqueza do movimento social, das esquerdas hoje, quem resolverá o caso Bolsonaro serão os próprios militares. A solução brasileira, a partir daí será uma cópia do que está sendo feito no mundo. Os países que conseguirem resolver a crise estarão mais fortes. Estamos na primeira fase, negacionista. Não sabemos o que virá depois.”

Grupo do avestruz

Da aldeia onde vive em Portugal, em total confinamento, o sociólogo Boaventura de Sousa Santos considera que vivemos em quarentena há 40 anos, uma quarentena ideológica. “Não há opção, temos vivido isso. Somos povos quarentenados. A essa altura qual era a ameaça? O fascismo. As esquerdas se unem quando os fascistas já estão no poder. Tem sido a nossa tragédia”, disse.

E isso num Brasil que tem ainda tem dois problemas de saúde pública: o vírus e o presidente Bolsonaro, ironizou. “Para o povo brasileiro não se sentir tão só, tem também o Turcomenistão, a Nicarágua e a Bielorrússia”, comparou. “O Brasil entrou para o grupo do avestruz, um país que antes estava nos Brics (o grupo que até o golpe de 2016 reunia os mercados emergentes de Brasil, Russia, Índia, China e África do Sul).”

Boaventura classifica a pandemia do coronavírus como um acontecimento histórico. “Mas não vamos sair da pandemia, vamos entrar no novo normal que é a pandemia intermitente, se não houver mudança no modelo de capitalismo”, avalia. “É uma crise que vai fazer modificações para que tudo fique na mesma. A gente pertence a natureza, não a natureza que pertence a nós.”

Articulados e não soltos

A professora Virgínia Fontes relatou as inúmeras reuniões das quais participa para que nem tudo fique na mesma. “Para sairmos articulados – e não soltos – depois da pandemia. Continuo no mesmo ritmo, 12 horas por dia. A vida em casa toma mais tempo.”

E falou sobre seu trabalho com grupos de pesquisa que fazem acompanhamento diário da covid-19 no mundo, na imprensa. “A grande questão é que a saúde tem um processo de gestão privada que está colocada na cabeça das pessoas. Precisamos ter cabeça de gestão coletiva”, disse, destacando que a vida passa à frente do lucro e isso precisa ser lembrado, porque cada um tem de resolver seu problema pessoal e imediato. “A gente luta contra isso com armas pré-históricas. O empresariado brasileiro quer destroçar qualquer conquista de direito para qualquer nível da população.”

Sobre o futuro pós pandemia do coronavírus, a professora acha que não é possível se fazer previsão. “Trabalhador sem direito se expandindo mundo afora. Quem vai controlar essa massa de trabalhadores? Século 20 foi totalmente contrarrevolucionário para assegurar a domesticação da luta. Urgente reconstruir formas de organizações para além do limite que a gente conhece, inclusive o parlamentar. Muito ousado para quem está nos seus escaninhos, nas suas instituições.”

E cita o fato de a pandemia ter surgido na China, num país continental, que teve de adotar medidas ousadas e drásticas. “Isolou uma província toda de olho no continente (no resto do país). Abriu uma forma de lidar com o tema que colocou a vida antes do lucro. Essa questão está colocada hoje internacionalmente. Em condições dramáticas, porque o capital está girando para drenar recursos públicos para si mesmo e retirar mais direitos dos trabalhadores.”

Virgínia Fontes também acredita que as condições de luta para o povo trabalhador serão mais árduas, mais complexas, mais extremas. “Todos que queremos isso temos de fazer um programa internacional anticapitalista. Interromper as bolsas, impedir a circulação do capital internacional. Um programa mínimo internacional claro, fundamental para pensarmos juntos.”


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