Lula livre?

STF decide: prisão só depois de esgotados recursos da defesa, como diz a Constituição

"Caso Lula mostrou como o sistema funciona mal", afirmou Gilmar Mendes, que reiterou críticas à Lava Jato: "Prisões provisórias de Curitiba se tornaram definitivas". Política é de Estado, não de candidatos a heróis, diz Toffoli

Carlos Moura/SCO/STF
Carlos Moura/SCO/STF
O STF avalia ações que defendem interpretação da Constituição sobre prisões, um tema que divide a Corte há pelo menos uma década

São Paulo – O Supremo Tribunal Federal (STF) revisou sua decisão sobre a prisão para condenados na segunda instância e decidiu nesta quinta-feira (7) que as privação da liberdade só pode ser determinada depois de esgotados todos os recursos. Com o placar empatado em 5 a 5, coube ao presidente da Corte, ministro Dias Toffoli, anunciar a decisão, que poderá ter influência direta no caso do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cuja prisão completou hoje um ano e sete meses.

Durante a sessão, os ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello, decano do STF, fizeram críticas a procedimentos da Operação Lava Jato. O primeiro, por exemplo, disse que decisões vindas de Curitiba, que deveriam ser provisórias, tornaram-se definitivas. “Se há o combate à impunidade é em razão desse STF, do parlamento que criou a lei e de quem a sancionou. Essa é uma política de Estado, não de heróis ou candidatos a heróis. Até porque as pessoas passam, as instituições ficam”, disse Toffoli.

Toffoli procurou pontuar, mais de uma vez, do que tratava o julgamento: se o Artigo 283 do Código de Processo Penal (CPP) – cujo teor ele leu três vezes, enfatizando representar uma vontade do parlamento –, que prevê prisão após o trânsito em julgado, quando não há mais recurso, conforme o princípio da presunção de inocência previsto no artigo 5º da Constituição: “Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Interrompido em 24 de outubro, o julgamento analisava as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43, 44 e 54. Essas ações, ajuizadas pela PEN (atual Patriota), pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e pelo PCdoB, pediam a constitucionalidade do artigo 283.

Ainda no início do julgamento, o relator das ADCs, ministro Marco Aurélio Mello, considerou que a prisão na segunda instância fere o princípio constitucional. Seu voto foi seguido por Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Celso de Mello, os dois últimos nesta quarta, e, por fim. Toffoli. Tiveram posição divergentes os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia.

O presidente da Corte afirmou, várias vezes, que o artigo do CPP expressa a vontade do parlamento, e lembrou que o Congresso também pode alterá-lo. “O que estamos julgando hoje é este texto normativo.” Durante seu voto, foi interrompido algumas vezes por Gilmar Mendes, que o apoiava, e por Luiz Fux, que tentava contestar.

Democracia é plural

Primeira a votar na tarde de hoje, a ministra Cármen Lúcia iniciou sua fala pregando respeito às posições contrárias como princípio democrático. “Em tempo de tanta intolerância com tudo e com todos que não sejam espelhos, causa espécie que se adotem discursos e palavras contrárias ao que é da essência do Direito e da democracia. Quem gosta de unanimidade é ditadura. Democracia é plural, sempre. E o Direito vive do contraditório”, afirmou a ministra, que acompanhou a divergência e ampliou, às 15h10, o placar para 5 a 3 a favor da possibilidade de  prisão após a segunda instância. Segundo ela, um “acidente de computador” impediu a leitura do voto na íntegra.

Cármen Lúcia lembrou ainda que o tema não era simples porque há divisão na Corte há pelo menos uma década. Em 2009, quando o STF decidiu por prisões apenas após o trânsito em julgado, Cármen foi voto vencido. A posição do Supremo mudou em 2016. “Jamais deixei de acatar e aplicar aquilo que se decidiu. Este é um tribunal, como é a comunidade jurídica, que tem responsabilidade jurídica com a garantia constitucional deste país. (…) Não se está, aqui, a testar, conforme o resultado, a falibilidade dos processos, mas a busca das melhor interpretação que favoreçam os direitos fundamentais no Brasil.”

Provisório virou permanente

Na sequência, Gilmar Mendes afirmou que as instâncias ordinárias fizeram mau uso da possibilidade de prisão após a segunda instância, com base em decisão do próprio STF. “Decidiu-se a execução da pena seria possível, mas não imperativa”, disse o ministro, falando em “desvirtuamento”, tornando prisões provisórias em alongadas. “E as prisões provisórias de Curitiba se tornaram em decisões definitivas”, acrescentou. “Portanto, a regra era a prisão provisória de caráter permanente, e isso passou a me chamar a atenção.”

Em 2009, Gilmar também votou pela possibilidade da prisão em segunda instância. Mas ele defendeu critérios para que isso aconteça e disse ter sempre manifestado “inquietação” com prisões realizadas automaticamente, sem a devida fundamentação.

Ele fez referências explícitas à situação de Lula. “Eu posso ser suspeito de tudo, menos de petismo. E também não sou anti-petista. Este caso Lula é um caso para estudo. porque, de fato, mostrou como o sistema funciona mal”, afirmou o ministro, que chegou a ser interrompido pelo presidente da Corte. Dias Toffoli destacou que a própria força-tarefa da Operação Lava Jato, em Curitiba, já se manifestou pedindo progressão da pena e que Lula já deveria estar fora do regime fechado. Gilmar respondeu que só fez isso a partir da possibilidade de o Supremo decidir a questão: teria sido uma “benevolência compulsória”. Às 16h08, ele concluiu o voto acompanhando o relator, com o quarto voto a favor da prisão apenas concluído o trânsito em julgado.

Estado não pode abusar

Depois de quase uma hora de interrupção, já perto das 17h o decano Celso de Mello iniciou seu voto apontando a corrupção como “agente de decomposição da substância das instituições públicas” e fator que “deforma o sentido republicano da prática política”. E ressaltou que nenhum ministro da Casa discorda do combate rigoroso “a todas as modalidades de crimes praticadas por agentes públicos, qualquer que seja a posição hierárquica”, ou por empresários, reunidos, como definiu “em um imoral sodalício (conluio)”.

Mas ele acrescentou que a repressão a qualquer modalidade de crime não pode se dar com desrespeito à ordem jurídica. “O Estado não pode agir de modo abusivo”, afirmou o ministro. “Uma Constituição escrita não configura mera peça jurídica. (…) A Constituição não pode submeter-se à vontade dos poderes constituídos nem ao império dos fatos. Sua supremacia é a garantia mais efetiva de que os direitos e a liberdade jamais serão ofendidos. E cabe ao STF a tarefa de velar para que essa realidade não seja desfigurada.” O processo penal, emendou o decano, “não pode ser instrumento de arbítrio do Estado”.

Para Celso, a Lava Jato e outras operações evidenciaram um cenário de “delinquência institucional”. Ele defendeu a “intangibilidade” da Constituição. “Nada compensa a ruptura da ordem constitucional, porque nada recompõe os gravíssimos defeitos que derivam de gesto de infidelidade ao texto constitucional.” O voto do decano foi o mais longo, aproximadamente duas horas, concluído às 19h08.

 


A íntegra da sessão pode ser vista aqui