Democracia em colapso?

Ferréz: periferia perdeu a ilusão com Bolsonaro, mas ainda não se levantou

Debate com Ferréz, Esther Solano e Christian Dunker investiga a disputa de narrativas e por que o discurso do medo, do ódio e do conservadorismo triunfa

São Paulo – Até que ponto a “linguagem” popular, quase oral, das redes sociais teria sido o mais bem-sucedido propulsor do conteúdo de ódio que moveu a ascensão do conservadorismo? Em que medida o acesso das classes mais pobres a oportunidades – bens de consumo, empregos formais, ampliação dos estudos, profissionalização etc. –, antes só possíveis a integrantes da classe média e da elite branca, foi combustível da intolerância desse segmento da população incomodado com a ascensão de “indesejados”? Como a propagação em massa de conteúdos moralmente demagógicos contaminou o senso comum hegemônico a ponto de pôr em xeque o amadurecimento democrático e causar uma reviravolta na política e no funcionamento das instituições?

A busca de respostas a essas questões reuniu à mesma mesa, no seminário Democracia em Colapso?, sob o tema “Comunicação e Hegemonia Cultural”, três diferentes especialistas dedicados a investigar e entender o inconsciente e o conhecimento popular. O psicanalista Christian Dunker, professor da USP; a socióloga e pesquisada Esther Solano – que já conduziu pesquisas de campo para mapear a adesão dos segmentos populares ao bolsonarismo e já investiga a penetração da possibilidade Luciano Huck junto a essas classe –; e o poeta, escritor e estilista Ferréz, cuja obra é inspirada e alimentada por sua ligação umbilical com a periferia onde nasceu e de onde nunca saiu. A RBA, um dos veículos promotores do evento, esteve representada pela jornalista Cláudia Motta na mediação da mesa.

Para Ferréz – que após o debate concedeu entrevista à RBA –, a saída para fazer a disputa de narrativa na indústria cultural com o crescimento da ideologia conservadora é falar a língua do povo. Organizações, partidos e intelectuais de esquerda se distanciaram das periferias e dos setores mais populares, que ficaram à mercê do discurso conservador, de mais fácil compreensão. Discursos de ódio e moralismo propagado pelos pastores na televisão são exemplos de respostas de fácil compreensão. E nas periferias do país, que vivem num cenário violento, marcado pela precariedade dos serviços públicos, a democracia nunca esteve ao alcance das mãos.

Mais “Democracia em Colapso”

Leia também em “Democracia em Colapso?
 No Brasil pós-golpe, era da ‘conciliação’ dá lugar a era da devastação
Marilena Chaui: ataques a educação tiram país da sociedade do conhecimento

• Politização do Judiciário é parte da máquina de moer gente da elite capitalista
• Extremismo avança sobre a democracia e os direitos humanos no Brasil

O escritor, morador do Capão Redondo, no extremo sul paulistano, ficou satisfeito com a diversidade da plateia do Sesc Pinheiros, na zona oeste da capital paulista, com forte presença de negros e negras, pessoas trans e idosos, o que revela um grande interesse popular na reconstrução da democracia. “Normalmente, nessas plateias, são todos brancos e dá um desânimo”. Na periferia, segundo ele, a democracia está em colapso há 500 anos. “O discurso mudou para alguns. Aí uma pseudo-classe média se revoltou.” Mas as estruturas de exploração são as mesmas de sempre.

Um dos principais desafios, para reagir a esse ambiente, é de linguagem. A mídia e a classe política produzem discursos sofisticados para o povo não entender. “A gente não se comunica com as pessoas que a gente tem que se comunicar. Não é questão de rebaixar o discurso, porque ninguém é menos inteligente. É outra cultura”, diz Ferréz o escritor, que destaca que as populações da periferia se relacionam fundamentalmente através da oralidade.

“A gente quer explicar demais. Você vê os canais de esquerda na internet, é uma explicação de 40 minutos. No canal da direita, em cinco minutos o cara destrói tudo”, é o poder de síntese “pelo ódio”, mas que funciona. “Não tem a pegada do povo, o discurso do povo. (Na periferia), não chegou a discurso que chegou na classe média e na classe alta. Os livros não chegaram dessa forma, mas de outra. A gente tem uma cultura de oralidade. E tem políticos de esquerda que não tem oralidade, que falam como brancos acadêmicos, de uma forma que a gente não compreende.”

Ferréz: “Estamos há 500 anos sendo massacrados no barato e daí, quando o discurso mudou para alguns, vem uma pseudo classe média, classe alta e se revolta contra o discurso. A gente estuda e se preocupa tanto com o inimigo, mas esquece de entender quem está ao lado, que vai pra rua realizar o suor todo dia

Já os grupos conservadores atuam na simplificação. “É muito mais fácil falar do menino de 12 anos que roubou o celular da tia no ponto, do que tentar mostrar o que é marxismo. Só que é muito mais difícil quando a gente abaixa a cabeça e não vai para a discussão”. Segundo ele, na periferia, já caiu qualquer ilusão com o governo Bolsonaro, mas o povo ainda não se levantou.


Forma e conteúdo

A socióloga Esther Solano, professora da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), diz que o bolsonarismo representa o “empoderamento” do discurso conservador, com consequências de longa duração para a política brasileira. É baseado na moralização da política, naquilo que chamou de “cristianização da esfera pública”, já que são fortemente influenciados pela linguagem dos pastores da televisão. Outro elemento formador, segundo ela, é a “datenização” da televisão, referência aos programas policialescos que propagam o discurso da repressão policial, sintetizado no lema “bandido bom é bandido morto”.

O campo progressista, além de não penetrar nos canais da televisão, sofre resistência também no conteúdo do seu discurso. Um dos dilemas, segundo ela, é como comunicar questões importantes como a luta antirracista e antipatriarcal, sem causar uma reação virulenta contra as chamadas “pautas identitárias”, outra face do “inimigo” a ser combatido pelo campo conservador.

Esther Solano – “Eu estou pesquisando a penetração do Luciano Huck nessas camadas (populares) e já vou avisando, é muito forte. Olha como uma mulher negra, periférica, me disse outro dia: ‘Professora, eu votaria no Luciano. Eu goste dele, é bonzinho, se preocupa com os pobres e ainda conheço ele, porque assisto ele o tempo todo na TV’. Olhe que interessante essa frase: ‘eu conheço ele!'”

Atualmente ela pesquisa o que chamou de bolsonaristas moderados, que se diferem dos radicais, a quem ela classifica como “fascista”. Dentre os moderados, o sentimento já é de “desilusão” e “arrependimento” com o apoio dado ao presidente nas últimas eleições. Dentre os mais pobres, moradores da periferia, a grande maioria é contra as reformas “antipovo” do governo, como a da Previdência. Há um apelo para que alguma força política se organize na defesa dos interesses dos trabalhadores, o que abre uma “janela de oportunidade” para a esquerda tentar se reconectar com esse público.


Lógica do condomínio

Para Christian Dunker, a sociedade brasileira é estruturada segundo a lógica do condomínio, onde o “muro” é a resposta para as diferenças sociais, não apenas na forma de residir. “A gente exclui, invisibiliza e coloca em bolsões de miséria uma quantidade expressiva da população. É também a forma de se pensar a saúde, a educação, a política, onde a gente tem um certo ‘nós’ – gente como a gente – que está se defendendo dos demais”.

Com a ascensão social de milhões de pessoas, que mudaram de classe social nos últimos anos, houve um “furo” nessa lógica de condomínio. Daí houve, por um lado, um aumento de expectativa por parte desses grupos que ascenderam à “nova classe média”, e a insegurança da classe média tradicional, que passou a ver seus espaços privilegiados, como universidades e aeroportos, serem invadidos por “indesejados”. O que o discurso conservador ofereceu a ambos os grupos foi a possibilidade de sair do estado de “medo” e “perigo” para o contra-ataque.

Christian Dunker: “Nessa sociedade de condomínios essa experiência da insegurança é dupla. Ela concilia e identifica dois grupos profundamente diferentes, com interesses distintos e o que a retórica bolsonarista conseguiu fazer? O medo reúne incluídos e excluídos”

Outra “bomba-relógio”, segundo ele, foi o acesso às mídias digitais, que convidou um contingente imenso de pessoas a opinarem, a participarem da lógica da disputa e da polêmica de opiniões, sem que tivessem a devida formação política. “É a opinião que te torna alguém, que te diferencia. A gente vai ver então o deslocamento de uma cultura do medo, da inveja, para uma cultura onde o afeto fundamental é o ódio.”


O maior inimigo do fascismo é o pensamento crítico, segundo Esther Solano. Por isso, o atual governo ataca a educação, que se esconde atrás de uma retórica que defende a escola como um lugar do pensamento técnico e neutro, justamente para despolitizar o debate. Ela também fez uma “autocrítica” sobre a atuação do mundo acadêmico.

“Encastelados” nos institutos de pesquisa, e presos a uma retórica complexa, os professores das universidades viram a sua autoridade corroída diante do grosso da população, que prefere acreditar nas mentiras espalhadas pelas redes sociais. O mesmo vale para os partidos e movimentos de esquerda, que precisam estar presentes nos territórios, se quiserem ser bem-sucedidos na disputa com o discurso conservador.

 

Leia também

Últimas notícias