Pontes para o passado

Extremismo avança sobre a democracia e os direitos humanos no Brasil

Em setores da igreja evangélica e no meio rural, os coronéis da fé, da família e dos bons costumes militam em defesa de uma agenda mais que conservadora: antidemocrática

Reprodução/Youtube
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Amanda, Henrique e Flávia: Família, religião e política como catalisadores de uma agenda conservadora e antidemocrática

São Paulo – O triunfo da extrema-direita no Brasil com a eleição de Jair Bolsonaro (PSL) e centenas de nomes antidemocráticos aos governos estaduais e nos legislativos é a vitória do extremismo religioso, sobretudo evangélico, alimentado pelo conservadorismo do brasileiro. Pautada por uma agenda de ataques aos direitos da mulher, da população negra, indígena, quilombola e a toda a diversidade sexual, supostamente em defesa da família e dos fundamentos da fé, da moral e dos bons costumes, essa combinação nefasta segue dando as cartas nos espaços de poder, nas políticas, ações, projetos e nos discursos. E tem como objetivo se fortalecer, se ampliar e se perpetuar como instrumento político e de controle social e econômico.

O retrocessos trazidos pela agenda da família e da religião, diretamente associada à questão de gênero, e as estratégias de enfrentamento estiveram na pauta do seminário internacional Democracia em Colapso?, realizado pela Boitempo Editorial e pelo Sesc na tarde desta quarta-feira (16). Para debater o tema, o pastor batista Henrique Vieira, a militante LGBT comunista Amanda Palha e a cientista política Flávia Biroli.

Titular da Igreja Batista do Caminho, de Niterói (RJ), Henrique Vieira alertou para um “extremismo evangélico” no Brasil, perigoso e potencializador de violências. Um “problemaço” para a democracia, os direitos humanos e a diversidade de gênero. “Esse grupo, que tem poder econômico, midiático e projeto de poder, cresce em um país fundado na escravidão genocida, colonizadora”.

Mas ressalvou: é um erro de análise acreditar que que o movimento evangélico inaugurou o retrocesso. “O conservadorismo do brasileiro alimenta o extremismo evangélico e vice-versa. Mas não há um monopólio do evangélico sobre o conservadorismo brasileiro”, ressaltou, ponderando que, se Silas Malafaia é evangélico, Marthin Luther King também era. “Ou seja, achar que são todos iguais, caretas, fascistóides prontos a dominar o Brasil, é ignorar uma disputa dentro do segmento evangélico, que majoritariamente é pobre, negro, periférico, favelado e trabalhador”.

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Essa diferenciação, segundo ele, é fundamental para conter o avanço extremista e seus efeitos. “Se cairmos nessa ladainha de que todo evangélico é igual, vamos entregar de bandeja o futuro do nosso país nas mãos dos coronéis da fé. É dessa armadilha que temos de sair.”

Valores sagrados

O extremismo a que ele se refere é o espírito da bancada evangélica no Congresso Nacional, que apresenta e aprova leis contrárias aos reais interesses da sociedade, e que se move entre as estruturas de poder e em instituições.  Está alicerçado em um fundamentalismo que afeta diretamente a pauta política e de gênero – que tem tudo a ver com os ataques do governo.

Conforme o pastor Henrique Vieira, o fundamentalismo se sustenta na leitura e interpretação literal de trechos bíblicos, sem contextualização, e em uma “perspectiva de  antigamente”, de que algo está sendo perdido: uma verdade, uma tradição. “Valores fundamentais e sagrados que estão sendo desafiados pelo movimento feminista, corroídos pelas LGBTS. Tem um senso de que os corpos em movimento na história estão corroendo essa absoluta objetividade nessa letra. E tudo aquilo que aparece como revolução, especialmente no corpo, se torna uma ameaça a esse código maior, porque o código, por definição, é indecifrável. Interditar o corpo, controlar, domesticar, definir, castrar o potencial sedutor, sensitivo, físico do corpo é também anular uma potencialidade subversiva de mudar o mundo.”

Outro espaço que ganha a prevalência e a densidade de um ativismo conservador na agenda política brasileira é a rural, conforme apontou a cientista política Flávia Biroli, que coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), da Universidade de Brasília (UnB). “A pesquisa que estou realizando tem me mostrado que existe um padrão regional com relação direta com a capacidade de atores políticos religiosos de mobilizar segmentos populares amplos, significativos em apoio a agendas que são mais do que conservadoras, mas antidemocráticas. Há uma capacidade de mobilização com a base na agenda rural.”

É na ideia de ameaça à família que está o apoio a alianças e agendas antidemocráticas, conforme lembrou Flávia. “Nós vimos isso acontecer nas eleições no Brasil e não podemos fazer de conta que não aconteceu. E existe apoio popular, embora nem todos estejam apoiando a agenda antidemocrática, como esses protestos de rua, com slogans ‘não se meta com meus filhos’. Eles são populares, de caráter popular”.

Entre essas “famílias de bem”, defensoras de valores tradicionais e morais ameaçadas estariam aquelas proprietárias de terras, com liberdade para usar armas contra trabalhadores rurais.

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Sua hipótese é a de que as inseguranças das pessoas em relação a vínculos são muito reais. Ou seja, vínculos entre as pessoas, relações de cuidado em uma sociedade com crianças, idosos, pessoas doentes em situações econômicas especificas.”Essas questões todas estão sendo transformadas em apoio a visões antidemocráticas. Há uma chave, a ideia de que as maiorias existiriam e seriam correspondentes a valores tradicionais ameaçados. E isso tem sido muito utilizado. Nós temos de ser capazes de fornecer uma alternativa, sem virar as costas para inseguranças que têm, sim, relações com vínculos, com as famílias, com as pessoas, seus afetos; a gente tem de ter capacidade de lidar com isso. Por que senão, gente, é prato cheio para mobilizações antidemocráticas”.

Pra mim, uma das coisas mais difíceis na educação de uma criança é o conceito de família. Parece louco nesse mundo privado que a gente construiu. Aí vem a sabedoria indígena: criança é responsabilidade tribal. Isso é lindo. É ampliar tanto o conceito de família que sai da imaginação privada e vira uma grande responsabilidade pública cuidar uns dos outros. Eu só chamaria isso de ampliação e não de fim. (Pastor Henrique Vieira)

Questão de gênero

Flávia destacou também que a noção de gênero avançou timidamente durante os governos de centro-esquerda em diversos países da América Latina nas últimas décadas. Mas isso foi o suficiente para assustar os setores conservadores, como lembrou. “Em seu discurso de posse, de nove minutos, Bolsonaro disse que o combate à ideologia de gênero é uma das metas de seu governo. Olha a que lugar político foi parar essa noção, que se transformou em estratégia política e se transforma em um dos eixos das lideranças de direita, extrema direita em várias partes do mundo.”

Estar no alvo das ações do governo, segundo ela, tem a dimensão de restringir os direitos ao desnaturalizar as ideologias de gênero e também obter apoio popular para processos de desconstrução democrática. Isso porque foi criado um inimigo – a ideologia de gênero.

“Esse inimigo foi solto em um momento em que há muito receio e insegurança entre as pessoas, causados pelo processo histórico de precarização de décadas de neoliberalismo. A decepção da democracia liberal, a desconfiança das elites políticas junto com esse processo de moralização das inseguranças tem trazido essa possibilidade de ao mesmo tempo desconstruir os direitos das mulheres e utilizá-los para criminalizar movimentos sociais e restringir direitos”.

Não é à toa, segundo ela, que os ministérios da Educação, das Relações Exteriores e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos têm suas agendas afinadas com o discurso presidencial. E o governo é um ator contrário à agenda da igualdade de gênero e da diversidade sexual nesse processo de desconstrução democrática.

Família

Enquanto diretriz e norma para a prática sexual e a produção de corpos – em síntese, a força de trabalho fundamental na engrenagem capitalista –, em desrespeito à autonomia sobre o desejo e gozo, o modelo tradicional de família foi duramente criticado pela educadora popular e ativista LGTB Amanda Palha. Ela foi além ao criticar também as limitações do próprio movimento em que milita e pediu mudança de postura.

“Dizem pra gente que o movimento quer acabar com a família, é promíscuo, defende o sexo desregrado… E a gente entrou na década de 1990 para cá numa onda de se colocar em posição defensiva de dizer ‘não, eu não quero destruir família nenhuma não. A gente só quer amar,  quer até constituir família’, o que é um retrocesso político violento, que violenta o movimento LGBT na América Latina. Cabe a radicalização da nossa parte de afirmar com todas as letras o que é uma estratégia política crítica anti-sistêmica. ”Vocês querem destruir a família. Sim, queremos'”, disse, sendo muito aplaudida nesse momento. “Mas dizer que queremos o fim da família não quer dizer que queremos o fim do afeto, o cuidado mútuo, o que é outra coisa.”