"Diplomacia de astrólogos"

Itamaraty em 2° plano, nepotismo e obscurantismo crescente marcam política externa de Bolsonaro

Presidente da República indica o filho para embaixada em Washington e, na ONU, Brasil vota contra direitos humanos, mulher e questões de gênero

Isac Nóbrega/PR
Isac Nóbrega/PR
A política externa brasileira: Eduardo Bolsonaro (esq.), o pai Jair e o presidente dos Estados Unidos Donald Trump

São Paulo – A semana que termina foi rica em exemplos emblemáticos do estágio a que chegou a política externa e a diplomacia brasileiras com o governo de Jair Bolsonaro. Nas Nações Unidas, o Brasil se aliou a países de regimes autoritários e contra a Europa, em questões relacionadas a direitos da mulher, igualdade de gênero e violência do Estado contra a cidadania. O Brasil votou a favor de um texto do Egito e Iraque na ONU que propunha  excluir o termo “direito à saúde sexual e reprodutiva”, e também a favor de uma emenda de iniciativa da Arábia Saudita cujo teor era contrário à educação sexual de crianças e adolescentes, condicionando-a à “orientação dos pais e guardiões legais”. A representação brasileira na ONU ainda se absteve de votar outra resolução que propunha investigação de milhares de execuções de civis por forças militares nas Filipinas. Em todas essas posições, o Brasil foi voto vencido.

Ainda na ONU, ao apresentar sua plataforma para se candidatar à reeleição no Conselho de Direitos Humanos da organização, o Brasil dos Bolsonaro e do chanceler Ernesto Araújo apresentou uma agenda que exclui menção ao termo “gênero”, assim como desigualdade e tortura, como informou Jamil Chade.

Para coroar a semana, o presidente da República declarou que vai indicar seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), para o posto de embaixador do Brasil em Washington, o cargo mais importante da diplomacia brasileira no exterior.

No Twitter, Bolsonaro pai justificou a agenda apresentada na ONU: “As principais pautas estão ligadas ao fortalecimento das estruturas familiares e a exclusão das menções de gênero”. Sobre a indicação do filho, declarou o presidente: “Não é nepotismo, eu jamais faria isso”.

O professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense (UFF) Thomas Heye questiona: “Eduardo Bolsonaro é qualificado para representar 200 milhões de brasileiros ou seria melhor um profissional de carreira? Washington sempre foi o posto de maior prestígio da carreira e tem uma razão para isso, já que os Estados Unidos são a maior superpotência do mundo e as relações com eles são vitais para nós.”

Ele aponta que, além todos esses fatos significarem a ruptura de uma tradição e de uma história da política externa brasileira, fundada em uma diplomacia profissional, conduzida habilmente, e independente de governos ou regimes, a “diplomacia de astrólogos” – e agora familiar – instaurada por Bolsonaro tem um preço ainda mais pernicioso: é que os efeitos e a “mancha” impressa ao país são muito difíceis de apagar no tempo.

“Nas relações internacionais, o tempo é diferente, é de longa duração. As manchas na nossa imagem vão levar muito tempo para se apagar. Para o mundo, o Brasil está deixando de ser o país do carnaval, do samba, do futebol e da alegria, para ser o país do ridículo, obscurantista e reacionário”, diz.

Heye dá o exemplo da ameaça brasileira de dar um calote nos credores internacionais, nos anos 1980. “Só por ter ameaçado, entramos numa espécie de SPC-Serasa internacional que até hoje repercute em taxa de risco maior, se o país quiser pegar dinheiro emprestado lá fora.”

Como exemplo atual a emprestar ao país o caráter “ridículo” difícil de apagar, Heye lembra declaração de Damares Alves (ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos), que, no início do governo, deu a seguinte declaração sobre costumes holandeses: “Inclusive na Holanda, os especialistas ensinam que o menino deve ser masturbado com sete meses de idade para que, ao chegar na fase adulta, possa ser um homem saudável sexualmente”. “Os holandeses ficaram chateados. Eles vão se lembrar disso por muito tempo”, comenta.

Diplomacia em família

No caso da embaixada nos EUA, isto significa que, em política externa, o Brasil está rapidamente decaindo de uma política que deveria ser de Estado ou, no máximo, de governo para uma política familiar na relação com o planeta. “O Itamaraty tem sido relegado a uma política coadjuvante na formulação da política externa”, observa Bernardo Wahl, professor do curso de Política e Relações Internacionais da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FespSP). Ele se refere tanto à nomeação de Ernesto Araújo para o cargo de chanceler como à indicação de Bolsonaro filho para a embaixada em Washington.

“Eduardo Bolsonaro não é um diplomata de carreira. Ernesto Araújo foi indicado pelo Olavo de Carvalho mesmo sendo embaixador júnior, quebrando uma longa tradição da nomeação de um embaixador sênior ocupar o posto. Sem dúvida, o Itamaraty, uma instituição de Estado tão qualificada, está relegado ao segundo plano, e os diplomatas que não defenderem o governo serão relegados a postos de menor importância e funções secundárias”, avalia Wahl. “Parecia que a questão do nepotismo já tinha sido resolvida no país, mas pelo jeito há um retrocesso nesse sentido.”

As informações são de que o descontentamento da diplomacia cresce dia a dia e diplomatas brasileiros de diferentes tendências estão se aliando contra esse estado de coisas. O ex-embaixador nos Estados Unidos Rubens Ricupero declarou, ao jornal O Estado de S. Paulo, que a possível indicação de Eduardo Bolsonaro para Washington representa “medida sem precedentes em nossa tradição diplomática e na história diplomática de países civilizados e democráticos”. Ele acrescentou que a indicação é típica de “monarquias absolutas”.

O último embaixador brasileiro na capital dos Estados Unidos que não pertencia à carreira diplomática foi Juracy Magalhães, em 1964, no governo do marechal Castelo Branco. Magalhães, aliás, cunhou uma frase célebre: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.

A agenda do governo na área internacional retoma a ideia de Ocidente e de americanismo, como aponta Bernardo Wahl. “Mas não quaisquer Estados Unidos, e sim um alinhamento automático ao governo de Donald Trump.” Para ele, os diplomatas brasileiros precisam, de fato, se movimentar. “A agenda do governo Bolsonaro causa impactos negativos à política externa brasileira e os diplomatas não podem simplesmente ficar parados de braços cruzados, observando a demolição de uma política externa construída ao longo do tempo de maneira muito cuidadosa.”

Mourão e a China

Ironicamente, os prejuízos à política externa, tanto na opinião de Thomas Heye como na de Bernardo Wahl, têm sido um pouco amenizados por um militar, o vice-presidente Hamilton Mourão. “Ele tem atuado na política externa. Já sinalizou numa viagem à China, por exemplo, que as relações se mantêm com aquele país, apesar das besteiras do atual governo. Mas pergunta-se: é suficiente para os chineses? Acho que não”, diz o professor da UFF.

Para o professor da FespSP, a visita de Mourão a Pequim atenuou um pouco a postura muito hostil de Jair Bolsonaro em relação à China durante a campanha. “Postura que se moderou depois de assumir, embora existam grupos no governo que ainda vejam a China com maus olhos, o que é problemático, porque a China é o principal parceiro comercial do Brasil.”