De 1988 a 2018

Livro aborda as lições e as ‘traições’ sofridas pela Constituição

'A Constituição Traída' vai das origens da Carta de 1988 para questionar, segundo os autores, por que tanto esforço de mobilização social foi 'para a lata do lixo'

Agência Brasil / Arquivo

Promulgação da Constituição de 1988. Avançada em garantir o bem-estar social e o Estado de direito como política de Estado, chega aos dias de hoje desrespeitada

São Paulo – O livro A Constituição Traída – Da abertura democrática ao golpe e à prisão de Lula (editora Hedra) do historiador Cleonildo Cruz e da advogada e professora Liana Cirne, surgiu, segundo os autores, da necessidade de analisar um momento de ruptura institucional. Com quase 500 páginas, a obra percorre as origens da Carta promulgada em 1988 até chegar ao período atual, marcado pelo impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, e pela prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no ano passado. Lula, por sinal, é um dos entrevistados, assim como o seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso.

No total, são 15 entrevistas, incluindo ainda o ex-vice Marco Maciel, deputados como Fernando Lyra, Roberto Freire, Nelson Jobim, José Genoino, Cristovam Buarque, Paulo Paim, Marcos Terena, Vicente Paulo da Silva (Vicentinho) e Jair Meneguelli, os dois últimos sindicalistas à época da Constituinte. Lançado na semana passada, em Recife, o livro traz ainda 15 artigos e/ou ensaios e prefácio do deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS). No final, uma detalhada cronologia, desde a Emenda Constitucional 26, de 1985, de convocação da Constituinte a partir de fevereiro de 1987.

Os autores incluíram três discursos de momentos históricos distintos: o do presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, em 5 de outubro de 1988, ao promulgar a Carta, Dilma em seu impeachment, em 29 de agosto de 2016, e Lula no dia de sua prisão, em 7 de abril de 2018. Em poucas páginas, três décadas que mostram transformações profundas e retratam avanços e retrocessos democráticos e sociais.

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Para historiador, Carta de 1988 sofreu com sucessivos golpes: ‘Que porta da barbárie não foi completamente fechada?’

“Eu penso que nós fizemos uma Constituição extremamente avançada, uma Constituição que foi menos sabedoria dos constituintes e mais sabedoria popular, como jamais houve na história deste país. E nós conseguimos retratar na Constituição um pouco da cara do que a sociedade pensava naquele momento, sobretudo a sociedade organizada”, diz Lula na entrevista, realizada quando ele ainda era presidente da República. Em 1988, ele exercia seu primeiro e único mandato de deputado, uma experiência da qual Lula não gostou, embora reconheça ter sido de profundo aprendizado, a partir da “convivência de adversários no mesmo espaço político”. 

Já FHC considera que aquele “foi o momento crucial” do país. “O que aconteceu na década anterior, na luta contra o regime militar, greves, Diretas Já, criação de muitas organizações da sociedade civil, tudo aquilo se consubstanciou na Constituinte”. Foi um início de “abertura social”.

Arranjo do atraso

Em seu texto, o economista Luiz Gonzaga Belluzzo fala em “arranjo social do atraso” que “preconiza uma sociedade submissa ao rentismo”. Para ele, o Estado democrático de direito “não pegou” no Brasil. Ao se referir aos entusiastas do impeachment de 2016, ele afirma: “As baixarias revelam, sobretudo, indigência cultural, e desprezo absoluto pelos valores do liberalismo político, o que nos coloca na rabeira do processo civilizador, ou se quiserem, na vanguarda do movimento de retorno à idade da pedra lascada”. 

O advogado e ex-ministro José Eduardo Cardozo lamenta o “desapego” atual à Constituição, ao Estado de direito e ao Estado social. Um desapego “constitucional e institucional” que atinge, afirma, as decisões judiciais. “Prende-se, a torto e a direito, sem condenação transitada em julgado.” Defensor de Dilma durante o impeachment, ele afirma que o processo foi montado a partir da derrota da oposição na eleição de 2014. “Logo após a posse, em 1º de janeiro de 2015, os setores derrotados nas urnas iniciaram uma frenética construção de um impeachment presidencial, mesmo não sabendo qual fato poderiam invocar para tanto”, afirma.

Para a advogada e socióloga Maria Goretti Nagime Barros Costa, a Constituição é “um verdadeiro marco de um patamar civilizatório”. Mas o momento atual significa um recuo histórico. “O golpe e a decorrência do golpe – as reformas – não por acaso significam igualmente a negação da Constituição de 88. A tomada da Presidência da República por um governo ilegítimo e o retrocesso da evolução na escala dos direitos do trabalhador significam a reação aos direitos sociais conquistados.”

No material de apresentação do livro, os autores lançam questões, tentando saber por que a Carta de 1988, “fruto de tamanha mobilização social, e que parecia ter tão bem exprimido a correlação de forças do Brasil de outrora”, foi “escamoteada e jogada no lixo”. 

“O que mudou? Que porta da barbárie não foi completamente fechada?”, perguntam.