Governo deliroide

Atuação de Zé de Abreu pode funcionar como oficina terapêutica a céu aberto

Para psicóloga Rita Almeida, brincadeira do ator, que se inspirou em Juan Guaidó, autoproclamado presidente da Venezuela reconhecido pelo governo Bolsonaro, é uma estratégia 'político-terapêutica'

mpj-maricá

A autoproclamada presidência do ator, que a cada dia tem mais apoiadores, está no centro de postagens iradas de Bolsonaro

São Paulo – A performance do ator e autoproclamado presidente da República, José de Abreu, é avaliada como uma potencial prática terapêutica a céu aberto contra o governo de Jair Bolsonaro (PSL). Essa é a avaliação da psicóloga Rita Almeida, de Juiz de Fora (MG), profissional com experiência no atendimento psicossocial na rede pública de saúde mental. Segundo ela, o desempenho de Abreu “tem ficado ainda melhor por contar com a participação do próprio Bolsonaro, que se dispõe a sair de sua posição de Presidente diplomado, para ‘bater boca’ com um presidente fake”.

A brincadeira de Zé de Abreu começou depois que governos de diversos países, inclusive o de Bolsonaro, reconheceram e apoiaram o autoproclamado presidente interino da Venezuela Juan Guaidó.

“Apenas esse fato já nos dá a medida do tamanho do surreal que nos (des)governa, e do quanto a oficina do presidente fake está funcionando. Sugiro que ela não pare, e se amplie”, escreveu Rita em uma postagem em seu perfil em uma rede social.

Segundo ela, é perfeito que esta oficina terapêutica a céu aberto esteja sendo feita por um ator. “Acredito que ele esteja colocando em prática uma coisa que fazemos nos nossos serviços de saúde mental e que funciona muito. Como usamos muitas práticas coletivas – grupos, oficinas e outras – os pacientes começam a ter que lidar com os delírios uns dos outros e, desse modo, começam a enxergar o seu próprio delírio. Ao duvidarem do delírio do outro, passam a duvidar do seu também. Ao rirem do delírio do outro, começam a rir do seu também”.

E ao se envergonharem do delírio do outro, “começam a se envergonhar do seu também. E todos esses afetos, se não derrubam completamente os delírios, os deixam menos rígidos, emburrecedores e limitadores”.

Por hora, segundo ela, o que pode ser feito para desbancar o Bolsonarismo e seu “mito deliroide” é miná-lo. “Para tal, precisaremos despertar o maior número de pessoas possível. Acho uma excelente estratégia fazer isso por meio do humor e do teatro do absurdo. O Brasil precisa enxergar sua própria loucura.”

Confira o texto de Rita na íntegra:

Não acho prudente, nem ético, usar a psicanálise para diagnosticar ou analisar pessoas fora do meu consultório, mas é totalmente possível ou aceitável utilizá-la para analisar conjunturas político-sociais. Mas, nem é preciso entender de psicologia para perceber que o bolsonarismo tem um componente ‘deliroide’ bastante forte. As tão faladas “Fake News” exemplificam muito bem o que eu chamo aqui de ‘deliroide’: verdades construídas a partir de fragmentos ou de indícios de realidade e tornadas verdades universais.

Eu trabalho no campo da saúde mental há mais de 20 anos, e se tem uma coisa que aprendi com esse trabalho é que o delírio não pode ser desmontado por uma simples confrontação com a realidade ou com racionalidade. Se o sujeito, em franco delírio, chega até você afirmando que tem um chip instalado na cabeça e através do qual se comunica com extraterrestres, não há absolutamente nada que se diga que mudará sua perspectiva de realidade. Nem que eu lhe mostre uma ressonância magnética do próprio crânio, ou que seja possível abrir sua cabeça para mostrar que não há nada lá, ele não se demoverá de sua verdade. Isso pelo simples fato de que aceitar desmontar tal delírio, seria desmontar a si próprio, já que, naquele momento, por uma fragilidade simbólica, o sujeito encontra-se totalmente assentado sobre aquela verdade. Se ela cair, ele cai junto. Freud dizia que os psicóticos amam o próprio delírio como a si mesmos. Resumindo, é isso.

Semana passada li um artigo do Javier Salas no El País, sobre o terraplanismo intitulado: “Você não pode convencer um terraplanista e isso deveria te preocupar”. Os terraplanistas, afirma Salas, simplesmente acreditam que a Terra é plana, e qualquer dado que possa prová-los do contrário é simplesmente ignorado ou considerado manipulação de conspiradores. Obviamente que não é possível dizer que todos os terraplanistas são psicóticos ou doentes mentais, mas certamente, podemos falar de um empobrecimento ou fragilidade simbólicas, o que favorece o discurso que chamei de ‘deliroide’, ainda que ele não seja rigorosamente delirante.

Voltamos ao bolsonarismo, fortemente fundamentado num discurso ‘deliroide’, reforçado pela sua reprodução maciça nas redes sociais, especialmente no whatsapp. Se o clã Bolsonaro está se aproveitando do discurso ‘deliroide’ ou se acredita mesmo nele, eu não saberia dizer. O fato é que ele tem sabido utilizá-lo muito bem, desde a campanha eleitoral, e também tem sido bastante competente em agregar a si personagens igualmente ‘deliroides’ (nem é necessário citá-los um a um). Diante disso, não há debate político possível. Não há racionalidade que possa confrontar os argumentos do bolsoplanismo. Então, o que fazer? Que estratégias utilizaremos?

O que posso dizer a partir do que estudei e pratiquei todos esses anos é que, se não é possível desmontar um delírio, é possível desconstruí-lo pouco a pouco, parte por parte. Fazer pequenos furos, abalar algumas verdades, duvidar, perguntar, são algumas das estratégias que utilizamos para ir minando a certeza do sujeito delirante, fazendo-o enxergar outras possibilidades. E é muito importante que ele encontre outras possibilidades, caso contrário, voltará para sua certeza delirante, que ao menos lhe assegura um lugar.

Comecei a escrever este texto, com a intenção de defender a estratégia do ator José de Abreu, ao criar seu personagem presidente. Obviamente que ele não partiu de nada disso que eu falei para se autodeclarar presidente, mas acredito que tenha pensado algo do tipo: “diante de tanto absurdo, o remédio só pode ser mais absurdo”, e suponho que ele tenha razão. Não há argumento racional que possa arredar o bolsoplanismo do seu lugar. O debate, o noticiário, a justiça ou a ciência (números, estudos e estatísticas), não fazem o menor efeito. Portanto, é necessário provocar outros afetos nessas pessoas, afetos que possam ir desconstruindo suas certezas. Obviamente que não estou me referindo ao clã Bolsonaro e sua trupe maluca, e haverá também um núcleo duro que irá defender o bolsoplanismo até a morte, mas é possível reduzir bastante o contingente de militantes ‘deliroides’, até que fiquem relativamente inofensivos.

Voltando ao teatro do absurdo estrelado por José de Abreu – e é perfeito que isso esteja sendo feito por um ator – acredito que ele esteja colocando em prática uma coisa que fazemos nos nossos serviços de saúde mental e que funciona muito. Como usamos muitas práticas coletivas (grupos, oficinas e outras) os pacientes começam a ter que lidar com os delírios uns dos outros e, desse modo, começam a enxergar o seu próprio delírio. Ao duvidarem do delírio do outro, passam a duvidar do seu também. Ao rirem do delírio do outro, começam a rir do seu também. Ao se envergonharem do delírio do outro, começam a se envergonhar do seu também. E todos esses afetos, se não derrubam completamente os delírios, os deixam menos rígidos, emburrecedores e limitadores.

Tenho considerado que a performance de José de Abreu, já abraçada por vários outros políticos aliados, pode funcionar como uma grande oficina terapêutica a céu aberto. E ela tem ficado ainda melhor por contar com a participação do próprio Bolsonaro, que se dispõe a sair de sua posição de Presidente diplomado, para “bater boca” com um presidente fake. Apenas esse fato já nos dá a medida do tamanho do surreal que nos (des)governa, e do quanto a oficina do presidente fake está funcionando. Sugiro que ela não pare, e se amplie.

Por hora, o que podemos fazer para desbancar o bolsonarismo e seu mito ‘deliroide’ é isso mesmo: miná-lo. Para tal, precisaremos despertar o maior número de pessoas possível. Acho uma excelente estratégia fazer isso por meio do humor e do teatro do absurdo. O Brasil precisa enxergar sua própria loucura.

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