Ditadura segue ativa, mas não pode nos paralisar, diz Erundina

'Vamos romper este momento', diz deputada, que em evento lembra da experiência de governar São Paulo, 30 anos atrás

“Não vamos ficar apenas contemplando a crise. Vamos romper este momento, protagonizar outro processo de resistência. Dizer não ao ‘coiso’ e derrotá-lo”

São Paulo – O tema do encontro era os 30 anos da experiência de Luiza Erundina, então no PT, na prefeitura da maior cidade brasileira, em uma vitória que surpreendeu a muitos naquele momento, inclusive o próprio partido. Mas o debate, realizado na noite de sexta-feira (29), em São Paulo, recaiu várias vezes para a atual situação política – um país que, em 1988, começava a se distanciar do autoritarismo agora se vê diante de novo espectro conservador, embora certas práticas do Estado nunca tenham sido abandonadas por inteiro.

“A ditadura ainda não terminou no nosso país. Continua viva, continua ativa”, disse a deputada – desde 2016 no Psol, depois de passar também pelo PSB –, citando a recorrente prática de tortura em instalações policiais e a violência sistemática contra parte da população.

O governo instalado em janeiro é sempre lembrado. “Não vamos ficar apenas contemplando a crise. Vamos romper este momento, protagonizar outro processo de resistência. Dizer não ao ‘coiso’ e derrotá-lo”, afirma Erundina, perante um auditório lotado, em evento promovido pelo Centro de Documentação e Memória (Cedem) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), na Praça da Sé, região central de São Paulo.

Vários ex-integrantes de sua gestão como prefeita, de 1989 a 1992, estavam na plateia, como os ex-secretários João Carlos Alves (Abastecimento) e Juarez Soares (Esportes). O primeiro lembrou de iniciativas na área de alimentação que serviriam de referência, anos depois, para o programa Fome Zero do governo Lula. E Juarez recordou, com humor, do esforço para recuperar o Autódromo de Interlagos e trazer a Fórmula 1 de volta para a cidade. Durante duas horas e meia, muitos falaram sobre medidas pioneiras na administração pública e relações – internas e externas – nem sempre tranquilas.

Na época, as eleições eram disputadas em turno único. Com mais de 1,5 milhão de votos, Erundina venceu Paulo Maluf. “Foi uma lavagem de alma para muita gente, para o país inteiro. O próprio PT não tinha essa expectativa”, diz a deputada, que havia passado por prévia do partido, disputando a vaga de candidato a prefeito em 1988 com Plínio de Arruda Sampaio, um nome que teria “mais apelo” para a direção petista, segundo ela.

“A grande novidade foi como se exerceu o poder na cidade”, avalia a ex-prefeita. “Ficou um saldo não só emocional, mas de experiência que revolucionou as políticas públicas.”

Prioridade ao social

Com Luiz Eduardo Greenhalgh de vice, o governo municipal reuniu nomes de peso em diversas áreas. O secretariado incluiu gente como Paulo Freire (Educação), Marilena Chaui (Cultura), Perseu Abramo (Comunicação) Hélio Bicudo (Negócios Jurídicos), Eduardo Jorge (Saúde), Paul Singer (Planejamento), José Eduardo Cardozo (Governo), Fermino Fechio (Administração), Ermínia Maricato (Habitação) e Lúcio Gregori (Transportes), entre outros. Gregori, por exemplo, idealizou um programa de tarifa zero que até hoje é reivindicado.

“Não fizemos obras viárias”, recorda a ex-prefeita, fazendo a ressalva da conclusão da obra do vale do Anhangabaú, iniciada na gestão anterior, de Jânio Quadros. Segundo ela, mais de 50% do orçamento foi destinado a políticas públicas e sociais, como serviços de saneamento básico e coleta de lixo. Ela cita ainda o orçamento participativo. “Lembro com muita saudade do Paul Singer, de seu entusiasmo ao dirigir as plenárias populares. Eu não interferia naquilo que era política específica daquela área.”

Erundina lembra de outro projeto de lei, que transformava as administrações regionais em “subprefeituras com poder real, poder político, gerencial, financeiro, de planejamento”. “Lamentavelmente, esse projeto não foi sequer discutido (na Câmara)”, acrescenta, ao observar que seu governo tinha minoria no parlamento e ela não estabeleceu uma política de alianças. A seu ver, a dependência de uma política de coalizão pode comprometer a gestão, do ponto de vista da democracia.

“A gente teve de se adaptar à realidade concreta. Nesse sentido, tivemos dificuldade de abrir o governo para outras forças políticas”, afirma a ex-prefeita, admitindo dificuldades na Câmara. “Mas eu preferi isso. A tal da governabilidade precisa ser repensada.” Erundina afirma que muita coisa só foi possível justamente “porque a gente não estava preso a voto de vereador”.

Para ela e outros presentes ao evento, foi a participação dos movimentos sociais que ajudou a viabilizar a gestão – que chegou a ser ameaçada de cassação no segundo ano, pelo Tribunal de Contas do Município, com “interesses nem sempre republicanos”. Havia também certo isolamento político, considerando que o país era governado primeiro por José Sarney e, a partir de 1990, por Fernando Collor. No estado, o Palácio dos Bandeirantes tinha Orestes Quércia, sucedido pelo então afilhado Luiz Antônio Fleury Filho. “Quem deu viabilidade ao nosso governo foi o povo organizado.”

Além da descoberta da vala clandestina no Cemitério Dom Bosco, em Perus, na zona noroeste da cidade, outras das várias questões lembradas no debate – o público falou durante uma hora e meia, ante uma hora da convidada – foi a iniciativa, pioneira, de criar o Centro de Documentação e Estudos da Cidade de São Paulo (Cedesp), para guardar a memória da administração. O Cedem da Unesp recebeu esse acervo em 1995, sob custódia, e tornou-se proprietário da documentação a partir de 2001.

 

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