Mazelas

Cultura do brasileiro ajuda a explicar falta de acerto de contas com a história

Debate no MPF abordou as dificuldades de se implementar a chamada Justiça de Transição no país. 'A luta pela democracia e direitos humanos está na vanguarda da resistência', afirma professor

reprodução / tv ufsc

Green foi um dos autores do capítulo sobre movimento LGBT do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV)

São Paulo – A permanente cultura da conciliação ajuda em parte a explicar a situação do Brasil, dominado “pelas mesmas elites políticas” desde seu descobrimento, avalia o professor norte-americano James Green, brasilianista especializado em movimentos sociais e que viveu no país durante cinco anos, entre 1976 e 1981. Convidado para palestra em evento do Ministério Público Federal sobre Justiça de Transição, ele descreveu uma linha do tempo, desde o Império, destacando o longo período de retorno à democracia, na história recente, como um fator que dificulta certo acerto de contas com o passado ditatorial, algo em que países vizinhos, como Argentina e Chile, conseguiram mais avanços.

Professor da Brown University, Green foi um dos autores do capítulo sobre movimento LGBT do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV). É também responsável pelo projeto Opening the Archives (Abrindo os Arquivos), sobre a relação entre Brasil e Estados Unidos. Entre outros assuntos, ele falou sobre a Lei da Anistia, de 1979, “que perdoou os torturadores”, o que posteriormente iria dificultar punições aos agentes do Estado responsáveis por violações de direitos humanos. Segundo o pesquisador, “a maioria da esquerda decidiu virar a página e seguir em frente”. 

Ele observa, por exemplo, que um dos principais relatos já feitos sobre tortura no Brasil, o livro Brasil: Nunca Mais, não se trata de um documento oficial. Mas destaca o trabalho que considera importante das comissões da verdade estaduais e municipais. “A CNV foi apenas um passo em um caminho longo e sinuoso em direção à justiça”, avalia, Green, para quem “o passado do Brasil ainda pesa sobre o presente”.

O pesquisador lista cinco itens que considera pilares da política brasileira, tendo como ponto de partida a mudança da Coroa portuguesa para cá, em 1808: Executivo forte, líderes carismático, conciliação, clientelismo e forte presença das Forças Armadas. Um possível “sexto elemento” a se considerar talvez esteja no papel do Judiciário. 

O primeiro item justificaria, eventualmente, a “mão pesada” do Estado. E o terceiro se apresenta na tentativa de buscar acordos políticos, “evitar conflitos e manter o status quo”. Para Green, “a fraqueza dos partidos e a consequente flexibilidade ideológica continua sendo um fenômeno notável”.

Classes dominantes

No debate que se seguiu à fala do brasilianista, a professora Vera Paiva quis saber, justamente, “onde foi parar a noção de conciliação” no país. Ele citou episódio da véspera, em que durante a formatura da turma de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) o jurista Celso Antônio Bandeira de Mello foi vaiado por parte da plateia e aplaudido pelos alunos, ao defender o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e seu governo.

Ao responder, Green disse que ao falar de “conciliação” procurava falar das classes dominantes no Brasil. “Apesar de conflitos internos, há uma unidade muito grande, porque elas entendem os seus privilégios de classe.” Ele acredita que a polarização atual pode ser ainda maior que a de pré-1964, o que vai exigir “novas linguagens, novas maneiras de organizar, de falar sobre o passado”. É preciso “repensar tudo”, defende, “uma visão muito mais ampla sobre o que é democracia, o que é inclusão social”. 

diego mattoso / ascom pr-sp
Procuradores, pesquisadores e ativistas discutiram em São Paulo a recuperação da memória política brasileira

Apesar do “momento horrível” do Brasil, como diz, ele se mostra otimista, afirmando que não houve uma “derrota irreversível”, embora a rearticulação não seja fácil. “A luta pela democracia e direitos humanos está na vanguarda da resistência. As mobilizações retornarão e as forças progressistas voltarão ao poder novamente. Devemos ser pacientes”, afirmou Green. “Nossa melhor arma no momento é a solidariedade.”

Essa solidariedade também se manifesta no exterior, como nos Estados Unidos, onde uma rede foi criada em 2018 e já reúne, segundo o professor, 35 organizações, com 14 grupos de trabalho e 235 universidades e faculdade em 42 dos 50 estados norte-americanos. A onda conservadora não se limita ao Brasil, que “infelizmente está à frente desse processo na América Latina”. 

O primeiro a falar no evento, realizado na última sexta-feira (23) em São Paulo, foi o chefe da Procuradoria Regional da República no estado, Thiago Lacerda Nobre. Ele definiu Justiça de Transição como “garantir o direito das pessoas de conhecer os fatos, alguns ainda não devidamente esclarecidos”. Também dependeu a independência do Ministério Público. “Que a Constituição Federal continue sendo nosso farol, nosso leme, nosso porto seguro.”  

A coordenadora da 2ª Câmara de Revisão Criminal, Luiza Frischeisen, após afirmar que “não há futuro sem memória”, comentou o fato de o Judiciário negar continuidade de ações que pedem punição de agentes do Estado que cometeram graves violações aos direitos humanos durante a ditadura. “Sempre me perguntam por que persistir com as ações se a Justiça é tão refratária”, afirmou, acrescentando: “Porque é nosso dever”. Ela lembrou que a partir de 2011, após a primeira condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos, no ano anterior, o tema se tornou prioritário para a área criminal do Ministério Público.

O grupo mais recente da área de Justiça de Transição do MPF trata da questão indígena. O procurador Júlio Araújo, coordenador do Grupo de Trabalho Povos Indígenas e Ditadura, disse que “padrões de violação” se repetem no período democrático. “As demandas territoriais acabam sendo o centro das atenções.”

“Contar é a nossa missão”, afirmou o o ex-preso político Maurice Politi  fundador do Núcleo de Preservação da Memória Política. Ele destacou a importância de preservar locais relacionados à repressão. Caso do Memorial da Resistência, que funciona no prédio do antigo Dops, na região central de São Paulo, e que recebe, segundo ele, 80 mil visitas por ano.

A casa que abrigava a Auditoria Militar, na Avenida Brigadeiro Luís Antônio, também no centro, irá se tornar um Memorial da Luta pela Justiça, em homenagem aos advogados que defendiam presos políticos. A área do DOI-Codi, na zona sul, foi tombada, mas ainda abriga uma delegacia, foi tombada. Já o Presídio Tiradentes foi derrubado. Há outros lugares que podem virar “sítios de memória”, que chegam a 27 na Argentina, lembrou Politi.

 

Leia também

Últimas notícias