Era Bolsonaro

Governo não está articulado para aprovar ‘reforma’ que destrói a Previdência

Para cientista política, articulação do governo Bolsonaro 'por enquanto é nenhuma'. Na opinião de economista, o cerne da proposta é a mudança de um regime solidário para o 'cada um por si'

Luis Macedo/Câmara dos Deputados

‘Nas próximas semanas veremos qual é a capacidade de articulação do governo’, diz cientista política

São Paulo – Jair Bolsonaro e seu grupo talvez tenham imaginado que conseguiriam aprovar a “reforma” da Previdência facilmente, valendo-se de suas falas nas redes sociais, pelas quais veicula a ideia de que a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) vai promover justiça e combater privilégios. Mas a tarefa vai ser muito mais complicada.

“Não só porque há no projeto medidas muito impopulares – e de uma impopularidade heterogênea, que atinge diferentes setores – como porque o governo está longe de ter a articulação política de que precisa no Congresso”, diz a cientista política Maria do Socorro Sousa Braga, da Universidade Federal de São Carlos.

Para ela, o grupo que ocupa o poder e tem o projeto como a “mãe de todas as reformas” já começou dificultando a tarefa para si próprio, politicamente. “Eles vão ter de negociar muito mais do que pensavam. Vão ter de negociar, por exemplo, cargos de segundo escalão, já que no primeiro escalão eles encheram de generais.”

Na opinião de Maria do Socorro, a tarefa para o governo seria facilitada se ele tivesse colocado lideranças políticas importantes em cargos que preferiu ocupar com militares. Como não fez isso, perdeu o trunfo da ocupação de cargos de ministérios importantes por partidos que poderiam dar uma base parlamentar sólida já no início do governo.

“Nas próximas semanas vamos ver como vai ser negociado tudo isso e qual a capacidade de articulação do governo, que por enquanto é nenhuma”, diz a analista. Símbolo da dificuldade de consolidar uma articulação política consistente é o próprio líder do governo na Câmara dos Deputados, o novato Major Vítor Hugo (PSL-GO). Esta semana, a Câmara impôs derrota ao governo ao derrubar decreto que mudava regras da Lei de Acesso à Informação.

Não é pouco o que a reforma da Previdência proposta por Bolsonaro representa. O economista Pedro Rossi, da Universidade Estadual de Campinas, observa que ela significa uma mudança conceitual drástica. O cerne da proposta é a mudança de regime.

“Ao invés de a sociedade discutir a questão ponto por ponto, a discussão de fundo é a seguinte: queremos um regime de capitalização, como proposto, ou um regime de repartição, como é o nosso historicamente? Essa discussão não foi feita.” 

Em outras palavras, explica, a sociedade vai deixar de lado um regime baseado na solidariedade, tendo o Estado como mediador dos pactos sociais e dessa solidariedade coletiva, para colocar no lugar um regime como o do Chile, baseado num sistema individual, onde existem muitos milhares de miseráveis na velhice.

“A concepção que está por trás do regime de capitalização é que a velhice não é um problema social, mas um problema individual. O problema é do indivíduo, não da sociedade. A reforma levará o país a abandonar os objetivos sociais, seus idosos, e se voltar para o individual, o “cada um por si.”

O ex-ministro da Fazenda Nelson Barbosa também chamou a atenção para a desconstrução da Previdência representada pela mudança de regime. “O texto do artigo 201-A da PEC representa o fim da Previdência Social. Logo, se ele não for retirado, o resto da proposta não deve ser discutido”, escreveu.

Segundo ele, o artigo mencionado “é o Cavalo de Troia” para destruir a Previdência social. “Caso aprovado, teremos apenas previdência individual, com as consequências desastrosas que vemos no Chile hoje.”

Sucatear para privatizar

Rossi anota que a PEC de Bolsonaro segue a mesma lógica de sucatear para privatizar. No caso da Previdência, a ideia é torná-la muito onerosa para quem contribui, que deixará de contribuir. Assim, é dado apoio social para acabar com a Previdência e substituí-la pela capitalização. A ideia da Previdência no Brasil é articulada com uma rede de seguridade social (assistência social e saúde) sob o pressuposto de assegurar dignidade na velhice, tal como determina a Constituição.

Por conta do sistema previdenciário no Brasil, a pobreza na velhice é residual. “Basicamente, não existe pobreza na velhice”, diz Rossi. O percentual de pessoas abaixo da linha da pobreza (R$ 406 reais) entre 30 e 50 anos é cerca de 25%. Acima de 65 anos, é abaixo de 10%; e em torno de 70 anos, aproximadamente 5%. “Isso se deve ao sistema que temos, que propõe que os brasileiros na velhice têm garantia de renda.”

Para Maria do Socorro, por conta de tudo isso, é de se esperar que haja grandes manifestações dos movimentos sociais, sindicatos e trabalhadores este ano. “Quanto mais a população for às ruas e mostrar sua insatisfação, mais legitimidade a oposição vai ter no Congresso e mais vai crescer. Consequentemente, o governo terá menos condições de aprovar a reforma”, diz. “Para isso, a esquerda vai ter que se reposicionar.”

Mesmo assim, uma eventual aprovação da reforma vai levar tempo. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), previu que a votação final pelo Senado será junho ou julho. “Só que, quanto menor a capacidade que o governo tem de formar uma base consistente, que ele hoje não tem, mais desidratada vai ser a reforma.” Uma PEC, para ser aprovada, exige maioria qualificada de 308 votos, em dois turnos de votação. “Isso vai para o segundo semestre, senão para o ano que vem”, prevê a cientista política.