Entrevista

Humberto Dantas: caso de Flávio Bolsonaro ‘amarrou o governo’

Para cientista político, Paulo Guedes 'vendeu inverdades' sobre reforma da Previdência em Davos: 'Se ele acha que ainda existem inocentes no mundo, vai cair do cavalo'

Alan Santos/PR

Bolsonaro no Fórum Econômico Mundial, na Suíça. Promessas de ‘país bom para negócios’ pode esbarrar na conjuntura política interna

São Paulo – Além do desempenho considerado internacionalmente pífio no Fórum Econômico Mundial em Davos, das denúncias contra o senador eleito Flávio Bolsonaro (PSL-RJ) veiculadas em toda a imprensa, da suspensão da importação de parte da carne de frango brasileiro pela Arábia Saudita, o governo de Jair Bolsonaro tem ainda pela frente a difícil tarefa de se articular com os novos deputados e senadores que assumem na próxima semana.

Para o cientista político Humberto Dantas, coordenador da pós-graduação em Ciência Política da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), por conta da conjunção desses e outros fatores, o governo recém-empossado terá enorme dificuldade de aprovar a reforma da Previdência que “vende” ao mercado, o que exige maioria de 3/5 de deputados e senadores em duas votações em cada Casa.

Para o analista, diante da nova legislatura, Bolsonaro “está em vias de enfrentar seu desafio mais complexo politicamente: construir a governabilidade”.

Para ele, essa dificuldade política está intimamente relacionada com o fato de que, para se eleger, o presidente da República se apoiou no combate à corrupção. “E agora a corrupção lhe bate à porta.”

Os fatos envolvendo o filho do presidente tornam a tarefa de articulação no Congresso e aprovação das reformas – principalmente a previdenciária, a mais esperada – ainda mais difícil. “O governo vai pagar caro para aprovar. E vai ficar mais caro, provavelmente, por conta do envolvimento do Flávio Bolsonaro.” 

Sobre a presença da comitiva brasileira em Davos, Dantas destaca ainda a questão previdenciária. “Se o Paulo Guedes acha que ainda existem inocentes no mundo, que existe bobo, ele vai cair do cavalo. Dizer aos estrangeiros que a reforma da Previdência vai ser consensualmente aprovada no Brasil é um assalto moral a qualquer um que saiba contar até três”, diz Dantas. 

O desempenho pífio em Davos, escândalos e milícias, a questão dos árabes que começam a retaliar, com o veto à carne de frango, tudo em menos de um mês de governo. Como avalia o cenário?

Eu incluiria um quarto ponto, difícil para ele, que é o fato de que na semana que vem o Congresso Nacional toma posse, o Congresso com o qual ele vai ter que lidar e trabalhar. A gente não enxerga com clareza qual estratégia está sendo usada pelo governo para construir a governabilidade. A estratégia pode até existir, mas, se existisse de fato, a gente já teria minimamente conhecimento dela. Ele está em vias de enfrentar seu desafio mais complexo politicamente: construir governabilidade, com um discurso contrário ao que tradicionalmente se fez no Brasil em termos de governabilidade. Ele não foge do que é a prática, mas o discurso dele é de quem não vai aceitar certas trocas que sempre foram feitas, e imagino que serão.

Coloco isso em primeiro lugar porque guarda relação com os outros pontos que você destacou. Um dos grandes desafios desse governo é que conseguiu transmitir para boa parte da sociedade que combateria a corrupção. E agora a corrupção lhe bate à porta. Se ele não tem nada a ver com o que o Flávio fez, e o Flávio não tinha nada a ver com o que o Queiroz fez, começo a achar muito difícil que essa narrativa se sustente, pela quantidade de fatos envolvendo Jair Bolsonaro e o próprio Queiroz. 

fespsp/divulgação
Humberto Dantas, cientista político

Existe um depósito na conta da esposa dele, fotos deles comendo juntos. É fato que Bolsonaro e Queiroz se conhecem e é fato que o Queiroz trabalhou para o filho dele, e é muito estranho que gente tão preocupada com um universo republicano tenha deixado tanta coisa na mão de um assessor, como a contratação de pessoas ligadas a milícias. “Ah, ele que contratou, não tenho nada a ver com isso”. Não, espera um pouco. É um gabinete, não a empresa dele. Se ele tivesse contratado para a loja de carros virtual dele, tudo bem, mas contratou para o seu gabinete. Essa história não fecha e não vai fechar, mesmo que a Justiça mande arquivar.

Até porque está na mídia…

Exato, e a mídia vai incomodar demais o Bolsonaro com isso. E é o papel da mídia. Vai dizer que “a mídia bateu em mim mais do que nos outros”. Mentira deslavada. A mídia – a despeito de qual canal seja – sempre perturbou, e é o seu papel em qualquer lugar do planeta que se diga democrático.

Não adianta vir com essa desculpa e tentar esconder aquilo que aparentemente está muito claro: o Flávio Bolsonaro tinha um gabinete muito condizente com o padrão de grande parte dos gabinetes brasileiros, onde se fazem trocas bastante questionáveis à luz ética, moral e legal. Isso é indiscutível, isso é cultura política. Tão cultural quanto o mensalão, que não foi invenção do PT, é construir gabinetes estranhos ao que diz a ética, a moral e as regras legais. É para colocar o Legislativo no divã e discutir o Legislativo no Brasil. Finalmente. Espero que seja.

E Davos?

Aí vem a questão de Davos. Número um: se o Paulo Guedes acha que ainda existem inocentes no mundo, que existe bobo, ele vai cair do cavalo. Dizer aos estrangeiros que a reforma da Previdência vai ser consensualmente aprovada no Brasil é um assalto moral a qualquer um que saiba contar até três. Não pode dizer isso internacionalmente.

Se ele acha que é o único porta-voz do Brasil lá fora, a imprensa internacional tem todos os contatos possíveis de qualquer brasileiro que eles queiram, tem acesso aos jornais brasileiros pela internet, e qualquer jornalista minimamente sintonizado e empresário cuidadosos sabem que nunca haverá consenso em reforma previdenciária no Brasil. Então o Paulo Guedes está vendendo inverdades, cenários inexistentes lá fora.

E esse discurso de Bolsonaro de seis minutos, apelando para a reorganização ideológica do Brasil, completa essa pouco razoável ida da comitiva brasileira a Davos. Bolsonaro errou a pauta, errou a temática, perdeu o timing, não dialogou, e prova que é efetivamente oco, vazio num conteúdo fundamental ligado àquilo que se espera do Brasil. O Brasil votou no não, não votou no sim. Não estou dizendo que o Haddad fosse o sim, mas o Brasil não votou num plano de país, o Brasil votou contra um ex-plano de país.

Segundo o Diap, são 255 os deputados da próxima legislatura que apoiam consistentemente o Bolsonaro. Como avalia esse número?

Olha, 255 não dá nem maioria simples, cinquenta por cento mais um, que seria 257, um número perigoso. Mas é um número interessante de partida, muito provavelmente com base na ideia de que são deputados com perfil mais conservador.

Bolsonaro tem ao lado dele um time de deputados mais conservadores que muito provavelmente apoiariam parte de sua agenda, e não inteira. Digo isso porque muitos desses indivíduos vêm, por exemplo, de realidades municipais muito pequenas, cidades pequenas, de somatório de cidades pequenas, em que, por exemplo, o peso da aposentadoria em termos econômicos, o peso do serviço público na população economicamente ativa, tudo isso é muito diferente, em termos de reforma previdenciária, do que o cruzamento da avenida Faria Lima com a Juscelino Kubitschek deseja.

O apoio desse grupo de deputados a Bolsonaro se sustenta, se a opinião pública ficar contra ele?

É necessária uma reforma previdenciária no Brasil? Sim. É a reforma mais esperada, falada e propagada etc.? Sim. O Bolsonaro, nesses 255 deputados, teria cabos eleitorais ou cabos parlamentares desta reforma que aparentemente será aguda, se levada adiante pelo Paulo Guedes? Não. Tenho certeza que não. Esses 255 contêm parte dos que vêm de realidades muito diferentes daquilo que o Paulo Guedes e o mercado sonham para a reforma ser aprovada.

Não estou dizendo que sou contra a reforma. Eu conheço um pouco de Congresso Nacional e posso afirmar que não vai ser fácil passar essa reforma previdenciária do jeito que o governo está vendendo por aí que vai conseguir, principalmente o Paulo Guedes. O Paulo Guedes é um articulador político e um concebedor de política aparentemente bem frágil. Ele precisa ter aula de política. Ou ele conhece muito e está otimista. Está me lembrando o Henrique Meirelles no começo do governo Temer.

O grupo de 255 deputados da conta do Diap seria formado por PSL, PP, PR, DEM, PSD, PTB, PRB, Pode, PSC, PHS, PRB e DC…

Então. São figuras mais conservadoras. Agora, também tem que se considerar que, se a reforma vier aguda, se vier intensa, pode ser que tenha gente do PSDB, do MDB, que vote a favor. Acho que essa soma que o Diap faz é mais ligada a pautas de costumes, ao universo conservador, que é plataforma do Bolsonaro, que é base dele. Mérito de um cara que conseguiu se eleger com base num discurso conservador. É um país que optou pelo conservadorismo. É da democracia, do jogo, do instante. E acho que esses caras talvez tenham muito mais afinidade com essa agenda do que propriamente a agenda da Previdência, que é ultracomplexa. E o governo vai pagar caro para aprovar.

E vai ficar mais caro, provavelmente, por conta do envolvimento do Flávio Bolsonaro. Essa questão amarrou o governo. É o pior universo possível nesse flanco do Bolsonaro de que era um combatente contra a corrupção, porque os filhos se aproveitaram disso, porque os filhos atacaram muito seus adversários políticos. Não é um universo simples.