Indústria da seca

Projeto de dessalinização de Bolsonaro abre caminho para privatização da água

O semiárido é 50 vezes maior que Israel. Levar água do mar dessalinizada para toda a população significa elevar ainda mais o custo da tecnologia cara e nada sustentável. Quem vai pagar a conta?

Arquivo/ASA

Ao contrário do deserto de Israel, há chuvas no semiárido. Armazenar essa água é a solução mais sustentável e barata

São Paulo – O projeto do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL) de mandar seu ministro astronauta Marcos Pontes a Israel, para se encontrar com empresários do setor de dessalinização, pode esconder outros objetivos além da oferta de água do mar tratada na torneira do povo do sertão. Entre eles, beneficiar empresas que instalarão usinas dessalinizadoras, farão a distribuição e depois mandarão a fatura cobrando pelo serviço prestado.

A desconfiança é do sociólogo Antônio Barbosa, um dos coordenadores da Articulação no Semiárido Brasileiro (ASA) – rede que defende, dissemina e implementa políticas de convivência com a região da seca em parceria com governos. É formada por mais de 3 mil organizações, como sindicatos rurais, associações de agricultores e cooperativas que lutam pelos direitos das comunidades locais.

“É a privatização da água, com certeza. Que chegaria muito cara, porque para além do processo de dessalinizar, é preciso o processo de transporte para levar a água às casas e à agricultura familiar, que está espalhada por todo o semiárido”, avalia.

Apesar de ser uma alternativa para suprir o consumo humano, animal e a irrigação agrícola em países do Oriente Médio, norte da África e algumas ilhas do Caribe, a dessalinização de água marinha é considerada inviável em áreas mais pobres pela Organização das Nações Unidas.

A ONU considera o fato de que as populações a serem atendidas geralmente estão muito distantes da usina. Com isso, além da energia empregada no processo em si, há grande demanda também para a distribuição, já que são necessários equipamentos para o bombeamento para as tubulações. 

E como essas usinas geralmente utilizam fontes de energia fósseis, que contribuem para o aquecimento global, acabam sendo um mal negócio tanto do ponto de vista econômico como ambiental. Tanto que a ONU e a Agência Internacional de Energia Renovável (Irena) recomendam a o uso de energia solar, eólica e geotérmica tornar a dessalinização mais barata e sustentável.

“Há ainda um conjunto de limitações da tecnologia, como o rejeito do processamento. O que fazer com o sal retirado?”, questiona Barbosa. Se fosse implementada no Brasil, seriam necessárias várias usinas para dar conta do abastecimento. O sertão nordestino tem uma área 50 vezes maior que o estado de Israel. Corresponde ao tamanho da França e Alemanha juntas.

O tamanho do mercado anima o empresariado israelense, que domina a tecnologia mundial de dessalinização. Não é à toa que mais de dez empresas do setor marcaram presença no 8º Fórum Mundial da Água, realizado em março, em Brasília. Um pavilhão inteiro foi montado para a exposição de produtos, serviços e equipamentos.

E na agenda do evento, que reuniu políticos, gestores e organizações, estavam muitos diálogos bilaterais que agora ganham mais espaço o presidente que deverá tomar posse em 1º de janeiro. Em 2016, quando esteve naquele país para ser batizado no rio Jordão pelo pastor Everaldo, acusado de ser beneficiado pela Odebrecht, aproveitou para se reunir com representantes do governo. 

Wikimedia commons
Usina de dessalinização em Israel

Interesses

Tão importante quanto os interesses comerciais e geopolíticos entre os dois países é o equívoco de políticas distantes da realidade local, avalia o coordenador de programas da ASA destaca. “A maioria dos políticos não conhece o Semiárido. Chegam com suas ideias, defendem, querem mudar tudo. Mas é preciso olhar para o Nordeste como parte do país, e não como uma região pobre, que precisa ser ajudada. Mas também não pode ser explorada em benefício de qualquer empresa, seja daqui ou de Israel”, disse. 

Em tempos de retrocessos, o retorno da nefasta indústria da seca é uma ameaça às conquistas obtidas pela população do semiárido. “Nos últimos 18 anos nós conseguimos mudar toda a lógica da água após mais de 500 anos. Pela primeira vez se acertou com uma política simples, barata e eficiente que é a construção de cisternas para armazenar água da chuva para uso na época da seca”.

Barbosa se refere ao Programa 1 milhão de Cisternas (P1MC), implementado em 2001. Criado por organizações da sociedade civil em 1999, foi apresentado ao governo FHC, que construiu 17 mil cisternas em um projeto piloto. A partir de 2003, com a assinatura de convênio com os governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, foram construídas 1,2 mil em mais de 1.200 municípios, beneficiando 5 milhões de pessoas.

Ao custo de R$ 2.500 a R$ 3 mil, cada cisterna tem capacidade de 16 mil litros e é suficiente para abastecer uma família durante o período seco. A água da chuva é captada por uma tubulação conectada ao telhado da casa. Com a tecnologia simples, as famílias não precisam caminhar quilômetros para buscar água nos grandes açudes, geralmente construídos dentro de fazendas particulares. 

Enquanto a seca de 1982 matou 1 milhão de pessoas, a maioria crianças com menos de 1 ano, a estiagem que durou de 2012 a 2017 não fez nenhuma vítima fatal. O programa já recebeu diversos prêmios. Entre eles, o Prêmio Prata de Política para o Futuro, em 2017. Considerado o Oscar internacional para as melhores políticas, é concedido pelo World Future Council (WFC), em cooperação com a Convenção das Nações Unidas para o Combate à Desertificação (UNCCD).

No entanto, falta ainda construir 350 mil cisternas, uma para cada família. Isso significa que 1 milhão e 750 mil pessoas não tem água água potável perto de casa. Outra demanda reprimida é por água para os animais e a agricultura de subsistência. Outras 800 mil família necessitam de um segundo reservatório, para guardar água para produzir alimentos e criar animais. 

“A política hídrica para nós não é uma questão meramente social, assistencial. É de desenvolvimento econômico e social. Estamos falando de produção de alimentos, autonomia. E isso está em jogo. O que queremos de Israel é a lógica da divisão da terra, do trabalho coletivo e de investimento em tecnologia local. Não usinas de dessalinização”.

Cooperação

Um dos maiores especialistas em gerenciamento de recursos hídricos do país, o ecólogo José Galizia Tundisi considera que há tecnologia desenvolvida no Brasil e cientistas de altíssimo nível estudando projetos de retirada de sais da água marinha, tornando-a potável. Quando presidiu o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), no governo FHC, chegou a apoiar programas de dessalinização de água salobra superficial em pequenos povoados, entre eles o da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

No entanto, acredita também que é preciso incentivar a cooperação científica e tecnológica com países avançados no tema, como no caso, Israel. “Acho que não tem nada demais uma aproximação para desenvolver tecnologia, considerando que ela pode ser absorvida para aperfeiçoar a nossa. Tenho certeza de que os israelenses têm tecnologia que nós não temos tanto em dessalinização como em outras áreas de exploração hídrica. Então não vejo prejuízo”.

Para Tundisi, as críticas quanto às diferenças entre o sertão brasileiro e o deserto israelense, por exemplo, que dispensaria a tecnologia estrangeira, têm de ser repensadas. “Quando se tem uma tecnologia desenvolvida, é possível adaptar. Isso não é razão para deixar de conhecer mais a tecnologia que pode vir a aperfeiçoar as que já desenvolvemos. O Nordeste brasileiro tem lagos com água salobra, águas subterrâneas salinas, que precisam ser dessalinizadas com tecnologias apropriadas”.

No entanto, toda essa gama de tecnologia que pode vir a ser compartilhada tem de ser convertida em um projeto para sua aplicação. E aí, segundo ele, podem até entrar parceiros da iniciativa privada. “Isso pode permitir a instalação de uma planta de dessalinização maior em Recife, por exemplo, que tem problemas de abastecimento recorrentes. Ou a implementação de projetos para pequenas comunidades no interior, que carecem de tecnologia efetivas para tratar água subterrânea ou água salobra de lagos, a baixo custo”.

Presidente do Instituto Internacional de Ecologia, que desenvolve pesquisas e programas de formação em recursos hídricos, Tundisi não acredita que empresas brasileiras, como a Embrapa, além de universidades, já tenham desenvolvido processos de dessalinização para aplicação em grande escala. O que se tem são projetos de menor alcance ou experimentais.

Há ainda programas para a dessalinização da águas salobras subterrâneas ou de – não da água do mar. O principal é Água Doce (PAD), lançado em 2004 pelo Ministério do Meio Ambiente (assista vídeo no final da reportagem). Em parceria com instituições federais, estaduais, municipais e sociedade civil, articula cuidados técnicos, ambientais e sociais na implantação, recuperação e gestão de fontes de água salinas e salobras.

No entanto, Tundisi considera insuficientes. “Precisamos expandir a conversação e troca de ideias entre cientistas para expandir a nossa capacidade de projetar e produzir nossas próprias plantas dessalinizadoras. Assim poderemos acelerar a solução dos problemas e ampliar as perspectivas”.